O dia é 7 de novembro. Acordei, tomei o pequeno-almoço e retirei o telemóvel do modo “dormir”. Tinha mais de 50 notificações sobre um alegado “flagrante delítio” do Governo. Não posso continuar sentada no sofá como se nada estivesse a acontecer. Como se fosse só mais um caso de corrupção — que não o é. Vou processar o Estado.
O Estado português consta como réu em centenas de ações judiciais. Já foi processado pela ex-presidente executiva da TAP, pela Comissão Europeia, pelas forças especiais da PSP. Despedimentos sem justa causa, violações das regras da UE, incumprimento de pagamentos, são alguns dos tópicos que o Ministério Público encontra quando é chamado a defender o Estado. Nenhum destes processos menciona a inação climática do Estado. Não há, pois, nenhum processo de litigância climática registado até à data em Portugal. Poderão se perguntar: mas a situação não é gravosa o suficiente para se justificar a proposição de ações de litigância climática?
Portugal ocupa o 5.º lugar dos países europeus mais afetados em termos de mortes prematuras e o 7.º em termos de perdas económicas, de acordo com a Agência Europeia do Ambiente (AEA). A Lei de Bases do Clima foi violada, de forma consciente, pelo Governo, colocando os direitos fundamentais numa bandeja entregue ao caos climático. E como se não bastasse: os negócios que deveriam ser verdes, como o caso do lítio e hidrogénio, só o são nos livros e nas caixas de vinho do gabinete de Vítor Escária. Se assim continuar, a exploração de recursos naturais e a mitigação da crise climática está condenada aos embrulhos de corrupção, tráfico de influência e interesses corporativos. Se assim continuar, a situação é gravosa o suficiente para justificar ações diárias contra o Estado português.
Levantei-me do sofá, dirigi-me à estante e abri o Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Qualquer pessoa, bem como associações e fundações defensoras de certos interesses, têm legitimidade processual quando esteja em causa a defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como por exemplo o ambiente (art. 9.º, n.º 2, CPTA). Legitimidade para impugnar um ato administrativo, para pedir a condenação à prática de um ato administrativo legalmente devido, impugnar e condenar à emissão de normas, entre outros. Podemos ainda dizer que qualquer cidadão português terá um interesse direto em processar o Estado, por exemplo, sempre que haja uma ação ou omissão que implique a violação do bem “ambiente” ou que implique um agravamento dos efeitos das alterações climáticas.
Uma vez tendo legitimidade ativa, a primeira coisa que um cidadão interessado deverá fazer é identificar os factos (ou omissões) que poderão estar em causa. Deverá, de seguida, consultar um advogado que elaborará uma petição inicial e a remeterá para o Tribunal competente. Eis que, de modo muito simplista, temos uma ação de litigância climática contra o Estado.
Ao entrar no website do Diário da República, encontramos a primeira lei portuguesa em matéria climática: a Lei de Bases do Clima, aprovada a 31 de dezembro de 2021. Como se não bastasse a informação de que a exploração de lítio e hidrogénio em Portugal está embrulhada num caso de corrupção tal que derrubou um Governo de maioria absoluta, a Lei de Bases do Clima também não poupa a incapacidade material da política portuguesa. Passaram-se mais de vinte meses desde a aprovação da Lei e nenhum dos artigos foi posto em prática.
A Lei de Bases do Clima constitui, na esfera jurídica do Estado, várias obrigações positivas cujo cumprimento é absolutamente fundamental para o sucesso da ação climática em Portugal. Temos aqui a base legal para a primeira ação de litigância climática em Portugal.
Conforme prometido, levantar-me-ei do sofá e dirigir-me-ei ao Tribunal Administrativo. Quero, posso e vou processar o Estado.