O necessário surgimento (finalmente) do tema da saúde mental nos nossos dias veio acompanhado pelo fetiche do “estigma”. Não há quase nenhum artigo ou coluna de opinião, ou até mesmo programa partidário, que não remeta para o fetiche e que nele conclua os males do setor. Esta problemática, relembra, metaforicamente, a incapacidade de pensar em ambientalismo sem que logo surja apenas e só o tema da reciclagem. No foro da saúde mental, tido como tema major, este problema apresenta duas dimensões. Uma primeira que podemos definir de “centralidade do eu” no mundo contemporâneo; uma segunda que rodeia os princípios da (falta de) política pública.
No primeiro plano, podemos e devemos refletir a problemática da saúde mental, avant la lettre, sob o prisma freudiano do mal-estar na civilização. Bem sei que Freud e a psicanálise deixaram de estar na moda; mas não há melhor tempo histórico para os colocar na linha da frente. Não faço esta escolha de forma militante, mas tão somente como ferramenta do pensar, que tem vindo a ser paulatinamente substituída pelo foco no comportamental e no cognitivo. É que convenhamos, a psicanálise apresenta menores resultados a curto e médio prazos quando nos cingimos a números, tão apetecível na senda da “nova” política pública, virada para o tempo escasso e veloz.
Na centralidade do eu, o mal-estar civilizacional é sintetizado pela pulsão de morte, pelo vazio patológico, pela auto escravidão do fazer. Parece que o fazer nos encaminha pela linha positivista do progresso e do bem-estar. Neste novo mal-estar civilizacional, a saúde mental surge como resposta à falta de gozo nas sociedades contemporâneas: consumo o exterior para não ser consumido pelo interior; mesmo que consuma, sou consumido pela ideia de que pouco consumo. Convenhamos que não é apenas o consumo que enferma o que podemos hoje designar por “centralidade do eu”, mas empresta a este um caráter sintomático. A par deste, o fazer e a ação passaram a ocupar um papel. É o bem conhecido just do it potenciado através de mecanismos empreendedores, a linguagem “desportiva” e “desportista” do campeonato do fazer, do sucesso da alta competição, no fundo, a transposição do competitivo e das regras do sucesso no atingir do bem-estar. Não será a linguagem per si que aqui nos interessa, mas o que nos diz esta sobre o atual “espírito do tempo”. Fazemos, corremos, cansamos e fazemos cansar; frustramos, ansiamos e zangamo-nos. Em paralelo, assome a espiritualidade como resposta, sem que fique bem marcado como em McMindfulness de Ronald E. Purser. a ideia de que esta espiritualidade é, ela própria, um meio de atingir novos e (antes) inalcançáveis objetivos e ganhos. Enfim, é nesta linguagem do desportista de alta competição que encontramos também o novo ethos do bem-estar, que se contrapõe ao silêncio, à reflexão, ao lazer e à regulação do mercado de trabalho.
É a partir deste plano que podemos definir o perigo que constitui este mal-estar civilizacional nas políticas públicas do bem-estar, nomeadamente no serviço social e na psicologia. O primeiro continua, de alguma forma, centrado na atuação do Estado, mesmo e apesar dos recentes ataques ao rendimento social de inserção e a “falta de competição” trazida pelo Estado Social, muito bem resumidas no ultimato de Elon Musk que ao deístico if I incluiu a interjeição perversa do but da aplicação do seu próprio dinheiro no combate à fome. Já no segundo encontramos a problemática do setor privado da saúde mental e daí a miragem do “estigma”. Se é bem conhecido o processo de resistência inerente ao próprio processo psicoterapêutico, também nos devemos debruçar sobre a falta de política pública em saúde mental no nosso país. É neste contexto que o problema da política pública não pode nem deve resumir-se ao fetiche do estigma, mas sim em investimento público numa rede concertada entre a administração central as administrações regionais de saúde e os municípios, combatendo-se a ideia de que o estigma é que afasta a procura por serviços de psicoterapia. Num país ainda de baixos salários e poder de compra, precisamos urgentemente de políticas públicas voltadas para a saúde mental, apoiando a regulamentação do mercado e o acesso dos portugueses. Ainda em pandemia, com os seus efeitos nefastos e em período eleitoral, que melhor momento para, finalmente, colocarmos em marcha, uma política emergencial para a saúde mental, com efeitos estruturais na nossa sociedade.