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Cavalo de Troia: Paninhos quentes

Na Revista Gerador 38, na crónica Cavalo de Troia, que agora partilhamos contigo, a Teresa Carvalheira fala-nos do excesso de produção de novas peças de roupa.

Texto de Redação

©É P’ra Amanhã!

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*Esta é uma crónica da Teresa Carvalheira, inicialmente publicada na Revista Gerador 38.

Apenas nas últimas duas décadas, a produção de novas peças de roupa duplicou: hoje são produzidas cerca de 150 biliões, por ano. Já chega de disfarçar: há demasiadas roupas e não sabemos o que fazer com elas. Roupas descartadas vão certamente parar a algum lado… mas longe da vista, longe do coração, não é?

O óbvio que não queremos ver é que todas as nossas ações – até as mais pequenas – têm impacto. Como devemos então considerar a nossa responsabilidade individual e coletiva? Somos também tão ou mais responsáveis por tanta quanta mais informação conseguimos absorver sobre os limites dessas responsabilidades individualizadas. E quando falamos de escolhas de consumo, é importante considerar que escolher o que comprar já é um privilégio de classe. Ainda assim, as nossas escolhas de consumo estão limitadas pelo próprio mercado, anulando muitas vezes o impacto positivo que queremos e pensamos ter ao efetuar essas escolhas. Depois há a matemática do impacto, que é novamente um problema de somas – quantas mais escolhas sustentáveis faço, mais sustentável sou? Ou estará a virtude realmente no «menos é mais»? Terá a mudança de hábitos e um novo minimalismo também impacto?

A história de hoje começa na realidade das doações de roupa, sintoma do problema de raiz – a tensão entre a sobreprodução e o superconsumo e com claras injustiças sociais: neocolonialismo e desigualdades de género.

São poucos os dados sobre desperdício têxtil diretamente ligados às marcas de moda. Vão surgindo testemunhos sobre destruição de peças, ainda em loja, que não são vendidas, ou a não colocação à venda de peças provenientes de devoluções de compras online (muito potenciadas pela pandemia) e que são posteriormente incineradas. A logística de reinserir estas peças na cadeia de venda é maior e mais cara do que a sua destruição, e muitas vezes esta margem de «excesso/perdas» já é contabilizada na fase de produção, de modo a garantir lucro para a marca, independentemente do sucesso absoluto das vendas. Os dados que existem são exatamente esses: as marcas sabem naturalmente quanto produzem, mas tal informação não é totalmente pública, ainda que grandes passos tenham sido dados quanto à transparência na cadeia de abastecimento, nos últimos anos, e por pressão dos próprios consumidores.

Escrever esta crónica no dia 8 de Março faz-me refletir se o recente posicionamento de muitas marcas de moda quanto a questões de género será benéfico ou só marketing e potencial pinkwashing? A moda não é só «coisa de mulheres», mas revela-se paradoxalmente exploração e libertação feminina: 80 % da mão de obra global do setor têxtil são mulheres. Para o norte global, as roupas são símbolo de lazer, independência, pertença e autocuidado e, portanto, são encaradas como empoderamento e vistas sobre a lente feminina. Noutras realidades, a indústria da moda apresenta-se como uma oportunidade de trabalho, alternativa ao trabalho rural ou alguma independência financeira.

São, então, as mulheres que carregam (literalmente) o fardo do excesso da moda. Como expressão individual está longe de ser comparável a condições de vida ou direitos laborais, mas a moda é cada vez mais uma questão feminista e interseccional.

Valorização externa: nome dado às roupas canalizadas para revenda em atacado. Ou uma pequena lição sobre o sistema de doação de roupas: as roupas têm, na verdade, vários possíveis destinos. Para além da doação, podem ser recicladas (downcycling para estofos e enchimentos) ou revalorizadas – revendidas para reintrodução em mercados (valorização externa).

No deserto do Atacama, no Chile, montanhas de roupa usada do Ocidente confundem-se com a própria paisagem: impressionantes estimativas de 39 mil toneladas adicionadas a cada ano, como resultado da má qualidade, durabilidade e excesso de produção.

Já em África, mais precisamente em Accra, capital do Gana, o mercado de Kantamanto, um dos maiores mercados de roupa usada do mundo, lida com 15 milhões de roupas todas as semanas.

Obroni wawu: «Roupas de homens brancos mortos» – é o nome utilizado no Gana para designar estas roupas, dando algumas nuances locais sobre o problema – a chegada de roupa usada, de fraca qualidade, em mau estado e ocidental (merchandising e slogans sem contexto) acabam por deteriorar a economia e própria identidade local.

Ainda que descartadas, estas roupas «doadas» integram uma nova cadeia de valor local, empregando transportadoras, costureiras para personalização, remendos, ajustes e outras figuras estratégicas para adicionar valor a um produto já esgotado. São milhares as mulheres e adolescentes – Kayayei – que transportam (na cabeça) os cerca de 50 kg de cada fardo de roupa. As melhores roupas vendem a cerca de 1,60 € e quase metade do que chega não tem condições para revenda e acaba em aterros, praias e rios. É o final de vida de um ciclo que parece inquebrável, o mesmo que consome outras mulheres no início da cadeia de abastecimento – produtores – e o mesmo que continua a consumir a mãe-terra, com a poluição associada.

O norte global não só exporta o que não quer gerir, como o faz para países com ainda menor infraestrutura de gestão de resíduos. Na nova lógica colonial, o nosso lixo pode ser o tesouro de alguém, ainda que roupas já mal sejam consideradas uma necessidade básica.

Alguns países da Comunidade da África Oriental (EAC), como o Quénia e o Uganda, chegaram a proibir importações de roupas em segunda mão de modo a proteger os seus próprios fabricantes de roupas (alfaiates/costureiras e designers/artesãos).

Uma vez que este sistema de consumo foi exportado para economias emergentes – «em desenvolvimento», deve retornar à fonte e ser tratado tanto localmente, mas principalmente na sua origem – as sociedades de consumo ocidentais.

A França e a Suécia já alargaram as leis de responsabilidade de produtores (EPR) sobre resíduos têxteis, mas é necessário que mais países considerem leis e cooperação que financiem a reciclagem (global) de roupas e responsabilização dos grandes produtores (e poluidores). Para que a moda possa um dia vir a ser verdadeiramente libertadora, necessitam-se mais do que meias medidas!

-Sobre a Teresa Carvalheira-

Alentejana, mas inquieta, designer e upcycler, é community manager em Portugal do movimento internacional Fashion Revolution e produtora da série documental sobre sustentabilidade «É Pra Amanhã». Organiza, desde 2015, mercados de troca de roupas e está ligada à gestão de projetos transdisciplinares relacionados com inovação social e património em Portugal, Grécia e Turquia.

Texto de Teresa Carvalheira
Fotografia de É pra amanhã!
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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