«Instead of canceling, they should actually pay us for the full price of our work and hold the exhibition instead of cowering in the face of everyone calling them out»
Dana Scruggs, in NYT
Preocupa-me sempre cancelar seja lá o que for. Cancelar pressupõe um fim absoluto, uma espécie de morte que não compreende possibilidade de dúvida, discussão ou futuro.
É difícil pensar na palavra cancelamento e não a achar da mesma família espiritual da palavra censura. E no fenómeno consequente da censura na criação, produção e indústria cultural.
E eventual autocensura na criação e nas instituições que lidam com arte.
Exemplos de consequências desta cultura na arte ? De «Habacuc» às Pussy Riot, do Met & #metoo & Balthus ao Facebook & Vagina & Courbet, do «art post review» ao 42socialclub no Insta, da Fearless Girl ao derrube de estátuas.
Mas agora, interessa a citação. Refere-se à reação do Whitney Museum ao cancelar uma exposição com trabalhos de artistas negros que tinham sido adquiridos pelo museu a preços muito inferiores aos valores de mercado, porque estes tinham sido originalmente cedidos pelos artistas para ações de caridade e fund raising para o movimento BLM. Depois do protesto dos artistas, o museu decide cancelar. Na base da decisão poderá estar o medo de avançar e serem eles próprios alvos de um Cancel, vingança ou pura incompetência na gestão da imagem pública e de relações com artistas. O que interessa é que a ideia de cancelamento atua como um vírus paralisante.
Estamos num momento fundamental para percebermos o valor e a pertinência daquilo que hoje as redes sociais retiraram da web, a validade de uma discussão.
Num momento em que tantos novos e claros direitos de autodeterminação se afirmam coletivamente, importa perceber a raiz dos movimentos, o que os origina, a revolta inicial. Não são movimentos de cancelamento, são movimentos de libertação e justiça. De negação de determinadas realidades, sim, mas de progresso efetivo, mesmo que seja muitas vezes lento.
O perigo da política de cancelamento é contribuir para a política da ignorância. E é retirar o direito de que cada um decida o que quer pensar ou acreditar. A política de cancelamento é um míssil carregado de sentimento de culpa e vingança. Há uma de duas formas, normalmente, de reagir. Ou se é totalmente contra, ou se é totalmente a favor. E isso é cancelar a possibilidade de se educar, que é o objetivo primário da censura. Nunca soube de progresso nestas condições.
*Esta é uma crónica do Pedro Pires, inicialmente publicada na Revista Gerador de outubro.
-Sobre o Pedro Pires-
É CCO/CEO da Solid Dogma. O que quer dizer que é criativo, mas que também tem outro tipo de responsabilidades enquanto não aparecem outras pessoas que façam melhor o serviço. É o autor da crónica «Constructo Constritor» na Revista Gerador.