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Destransição: Dos mitos aos factos

Muito se tem escrito sobre a questão da transição de género e a crítica baseada em preconceitos bacocos tem acompanhado o movimento de empoderamento das pessoas trans e não-binárias. Entre elas surge a questão da “destransição”, muitas vezes tratada como prova de um falhanço ideológico e, quase sempre num ângulo estritamente pessoal, de pura vergonha e arrependimento.
*Este artigo foi escrito por Pedro Carreira, ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e fundador da esQrever, no âmbito da parceria com esta última entidade.

Texto de Redação

Fotografia de Jorge Saavedra via Unsplash

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Esta é precisamente a questão de um novo artigo da jornalista Bárbara Reis no Público que só se estranha pelo local da sua publicação: um jornal de referência nacional. Na realidade, é uma abordagem há muito tentada para descredibilizar, fragilizar e oprimir as pessoas trans, incluindo aquelas que efetivamente vivem uma destransição. Para tal, importa primeiro conhecer os dados conhecidos referentes à destransição.

Discriminação, estigma e a pressão familiar são os principais fatores

Um estudo recente, promovido pelo Instituto Fenway e pelo Hospital Geral de Massachusetts, descobriu que 13,1% das pessoas trans atualmente identificadas fizeram uma destransição nalgum momento da suas vidas. Destas, 82,5% atribuem a sua decisão a pelo menos um fator externo, como a pressão da família, ambientes escolares não afirmativos ou aumento da vulnerabilidade à violência, incluindo a agressão sexual.

“Essas descobertas mostram que a destransição e o arrependimento da transição não são sinónimos, apesar de os dois fenómenos estarem frequentemente confundidos na comunicação social e nos debates políticos“, explicou Jack Turban, psiquiatra infantil e adolescente na Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford e principal autor do estudo. “Para a maioria das pessoas a destransição é-lhe imposta”, concluiu.

Uma quantidade crescente de estudos tem mostrado como a exposição à discriminação e ao estigma aumenta o risco de uma saúde mental fragilizada nas pessoas trans e de género diversificados. Este estudo sugere então que o estigma e a discriminação também devem ser entendidos como obstáculos para as pessoas viverem em segurança a sua identidade e expressão de género.

Livro desacreditado

No artigo do Público é mencionado o livro Irreversible Damage: The Transgender Craze Seducing Our Daughters (algo como “Danos irreversíveis: a mania transgénero que seduz as nossas filhas” em Português). Talvez devesse ser lido como um sinal vermelho a autora do livro, Abigail Shrier, falar em “epidemia trans”. Parece-me óbvio que associar uma epidemia às pessoas trans é profundamente ofensivo e errado.

Nele, como que para minar o trabalho associativo e legal que levou décadas a ser construído, Shrier fala da moda de “grupos inteiros de amigas em faculdades, escolas secundárias e até do ensino básico que estão a declarar-se transgénero“. Esta é uma clara tentativa da autora em explicar uma alegada destransição em grupo quando passar esta “moda” ou “epidemia”. Ora, desde logo, esta não é uma ‘moda’ quando há registos documentados com pelo menos 80 anos da existência destas pessoas

A jornalista faz questão de escrever que o livro foi escolhido como livro do ano em 2021 pela Economist, mas não refere o descrédito que enfrentou pela comunidade científica após a sua publicação.

O já referido Jack Turban na Psychology Today referiu que o livro está repleto de desinformação e que tem o potencial de mal-tratar jovens trans. Acusou Shrier de promover a negação de cuidados médicos de afirmação de género de jovens trans, uma posição marginal rejeitada por várias sociedades profissionais. Turban escreveu ainda que Shrier interpretou mal e omitiu evidências científicas para apoiar as alegações do seu livro e criticou a autora por retratar jovens trans com base em entrevistas às famílias numa “linguagem grosseira e ofensiva“.

Também na Science-Based Medicine foram escritas várias críticas ao livro de conteúdo “irreversivelmente desinformativo” (Rose Lovell) ou que “as alegações apresentadas não respeitam o rigor científico” (AJ Eckert).

Os critérios para acesso a tratamentos hormonais são claros

Uma das preocupações de Bárbara Reis é o de estarem “a saltar-se etapas” nas consultas e nos supostos perigos que as terapias hormonais podem ter em jovens e adolescente facilmente impressionáveis e influenciáveis. Empurraria as suas vidas para uma precipitada transição e, eventualmente, uma posterior destransição.

Vejamos então os critérios da World Professional Association for Transgender Health para que adolescentes recebam hormonas supressoras da puberdade;

  • Adolescente demonstrou um padrão duradouro e intenso de inconformidade de género ou disforia de género (suprimida ou expressa);
  • A disforia de género surgiu ou piorou com o início da puberdade;
  • Quaisquer problemas psicológicos, médicos ou sociais coexistentes que possam interferir no tratamento (por exemplo, que possam comprometer a adesão ao tratamento) foram abordados, de modo que a situação e o funcionamento da pessoa adolescente sejam estáveis o suficiente para iniciar o tratamento;
  • Adolescente deu consentimento informado e, particularmente quando não atingiu a idade de consentimento médico, família ou outras pessoas cuidadoras ou responsáveis consentiram com o tratamento e estão envolvidas no apoio à pessoa adolescente durante todo o processo de tratamento.

Antes que as famílias permitam as suas crianças iniciarem terapias hormonais, geralmente querem saber a probabilidade da criança mudar de ideia mais tarde sobre a transição e viver uma destransição. A resposta a esta legítima dúvida depende se já atingiu a puberdade.

Para adolescentes que atingiram os estágios iniciais da puberdade, as chances são muito baixas. Um estudo com adolescentes trans nos Países Baixos descobriu que apenas 1,9% das pessoas adolescentes que atingem a puberdade e iniciam bloqueadores da puberdade decidem interromper o tratamento.

Há mais debate sobre a probabilidade de as crianças pré-púberes de não se identificarem mais tarde como trans. Precisamente por esse motivo, elas não recebem terapias hormonais. Dado que ainda não iniciaram a puberdade, não haveria sequer necessidade de tal tratamento.

Bloqueadores de puberdade são benéficos para a saúde mental das pessoas trans

Além de todos estes critérios, é também conhecida a importância que bloqueadores de puberdade têm na saúde mental das pessoas trans. Um estudo recente entrevistou 20.619 pessoas trans e descobriu que 90% das pessoas adultas trans que queriam, mas não conseguiram aceder a bloqueadores da puberdade, tiveram pensamentos suicidas. Por outro lado, pessoas adultas trans que conseguiram aceder aos bloqueadores de puberdade, o número baixou significativamente em 75%.

Menos de 3% das pessoas adultas trans que queriam a supressão da puberdade durante a adolescência realmente a receberam, mostrando como tem sido difícil, historicamente, aceder a esse tratamento específico para disforia de género.

Ora, a questão das “mastectomias a raparigas de 13 anos” mencionadas no artigo toma aqui especial importância. Porque são estes bloqueadores que podem evitar situações de auto-mutilação por parte de jovens trans. Em particular, e ao contrário do que foi escrito, de rapazes de 13 anos. Ou seja, aquilo que é questionado pela jornalista é fomentado pelo próprio livro. Os argumentos de Shrier visam os tratamentos clínicos de jovens e adolescentes trans e, simultaneamente, denuncia as consequências da falta dos mesmos.

Transição social é muitas vezes o primeiro passo

Uma transição social pode envolver a criança a assumir um novo nome ou novos pronomes, ou ainda usando roupas estereotipadas de género. Uma transição social significa não colocar restrições sobre como a criança expressa o seu género. Esta é completamente reversível e não inerentemente perigosa.

Estudos mostraram que jovens trans com autorização para fazer a transição social têm saúde mental quase indistinguível dos seus pares cisgénero. Estes resultados contrastam fortemente com outros estudos onde jovens trans que não foram autorizados a fazer a sua transição social ganharam altos níveis de ansiedade e depressão. Se uma criança parar de se identificar como trans nesta fase, ela simplesmente volta aos pronomes, roupas, etc. do género atribuído à nascença.

Mais uma vez, se uma criança atingiu a puberdade e se se identifica como trans, é muito menos provável que ela pare de se identificar mais tarde como tal. Nesta fase, pessoal clínico pode oferecer um “bloqueador de puberdade”. Esses medicamentos impedem temporariamente que a puberdade progrida, permitindo que a pessoa adolescente tenha mais tempo para explorar e entender a sua identidade de género.

Efeito colateral mínimo e controlável

O único efeito colateral significativo dos bloqueadores de puberdade – usados igualmente noutras e variadas condições – é que a pessoa adolescente pode ter uma redução da densidade óssea. Por esse motivo, a equipa médica verificará regularmente a sua densidade óssea enquanto estiver a tomar a medicação. Se esta for interrompida, a densidade óssea volta a valores normais ao fim de alguns anos e à medida que a criança passa pela puberdade do género atribuído à nascença.

Alternativamente, se a criança adolescente continuar a identificar-se como trans e começar a receber hormonas de afirmação de género, como estrogénio ou testosterona, alcançará também aí a densidade óssea esperada. Uma vez parados os bloqueadores de puberdade, a mesma progredirá como se a medicação nunca tivesse sido iniciada, sendo este um dos seus maiores trunfos, a sua reversão.

E se acontecer uma destransição?

Se a criança, adolescente ou pessoa adulta decidirem fazer uma destransição de género importa que saibam e sintam o apoio da sua família e pessoas em redor. Sendo a exceção que confirma a regra, importa pois perceber que o estão a fazer livremente, sem pressão da família, estigma ou preconceito.

Embora a taxa de destransição já seja reduzida (os números variam entre os 5 e os 13%, conforme os estudos), ela pode ser ainda mais reduzida se houver uma real aceitação e empatia pelas pessoas trans. Importa recordar que a discriminação, o estigma e a pressão familiar – e não a confusão ou arrependimento como algumas pessoas alegam – são os principais fatores que levam uma pessoa a passar por uma destransição.

O apoio, independentemente da identidade vivida da pessoa, é essencial para a sua liberdade, saúde e bem-estar.

Bárbara Reis levanta a questão se “falar disto é ser conservador, de direita e transfóbico?“, pedindo que lhe cheguem “as etiquetas“, mas “também os argumentos“. Espero que estes sejam suficientes.

*Este artigo foi escrito por Pedro Carreira, ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e fundador da esQrever, no âmbito da parceria com esta última entidade.

Texto de Pedro Carreira, publicado inicialmente na esQrever

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