*Esta é uma crónica do Luís Sousa Ferreira, inicialmente publicada na Revista Gerador de outubro.
A Bola de Berlim foi trazida para Portugal por uma refugiada judia durante a II Guerra Mundial; o bacalhau é pescado nos mares do Norte; a figueira foi introduzida no nosso território no século VIII pelos Árabes; o fado é um caldeirão de influências que juntam o Brasil e o norte de África. Poderíamos estar nisto tempos infinitos. Tudo o que temos resulta de trocas, apropriações, partilhas e aculturações. Nada é puro, nada é exclusivo.
Sabemos que a história de Portugal é baseada em trocas, nem todas motivos de orgulho. Se em terra ainda conseguimos impor fronteiras mais ou menos claras, sendo a única fronteira terrestre de Portugal uma das mais antigas do mundo, os oceanos e a atmosfera mostram-nos diariamente que o mundo é uno e que as grandes batalhas que se adivinham só se resolvem num diálogo supra nação e intercontinental. Os novos populismos, que tentam reafirmar os traços heroicos e únicos dos povos, restauram o "orgulhosamente sós" e a supremacia de uns perante outros. Como sempre, usam a cultura, que diariamente desprezam, para criar epopeias naifs e identificar o inimigo comum. Cada vez menos envergonhados, usam a falta de clareza do «espaço público» virtual para lançar o medo e a desconfiança. Verdadeiros marketeers que criam a necessidade, ou seja, o problema, para poder vender as suas ideias.
Se em tempos o analfabetismo foi o rastilho, hoje a infoexclusão e a iliteracia são a carga necessária para dar gás a agendas adormecidas. Cabe à cultura continuar a despertar o olhar para a diferença, para a curiosidade no outro, para o diálogo intercultural. Cabe à política largar as práticas multiculturais, que apenas criam guetos, na ambição pobrezinha da tolerância. A ciência já o provou e a história recente demonstrou-o. Quanto mais abertos, mais livres, resistentes e bem sucedidos. A cultura é um ecossistema diverso e em constante atualização.
-Sobre o Luís Sousa Ferreira-
Formado em design industrial, é o diretor do 23 Milhas e fundador do festival Bons Sons. Não acredita que a cultura em Portugal precise de uma revolução, mas sim de uma mudança de prisma. É o autor da crónica «Disco Riscado» na Revista Gerador.