*Esta é uma crónica do Luís Sousa Ferreira, inicialmente publicada na Revista Gerador 38.
O território português é habitado há milénios, esculpido, trabalhado e ocupado por vários povos ao longo dos tempos. Muito do que tomamos como natural foi edificado e domesticado pelo ser humano num dado ponto no tempo. Diverso, tanto na sua geografia como no clima, Portugal depara-se com um dos seus maiores desafios: a coesão territorial. A desertificação, o envelhecimento da população, as alterações climáticas, os incêndios florestais, as monoculturas intensivas, a baixa densidade populacional que caracteriza grande parte da extensão do território, as migrações, a perda de bio- e agrodiversidade, o recrudescer de ecossistemas culturais e ambientais, o crescimento exponencial das áreas periurbanas, o centralismo, a mobilidade, os novos e os velhos recursos energéticos e a extração de minério são alguns dos desafios que enfrentamos. Para lhes dar resposta, urge a criação de um pensamento crítico a partir de várias ações à escala local, que beneficiem das vivências e apropriações das comunidades, assim como das visões externas que as tornam mais inteligíveis e enquadradas.
A paisagem poderá ser considerada como o primeiro bem cultural. Como base para a produção cultural local, ou cenário para as vivências em comunidade, que influencia e é, simultaneamente, alterada pela ação cultural. As paisagens não são estanques, resultam de uma série de fatores sociais que as transformam e lhes dão novo significado.
A cultura vive de mudanças constantes, de aculturações, de processos de intercâmbio, de inclusão de novas técnicas e recursos. É inevitavelmente aberta. Mesmo o reduto mais remoto teve e tem sempre pontes de comunicação com outros lugares. As identidades estão sempre em movimento, onde cada geração deverá contribuir com os seus passos. São lugares complexos, com nuances e com perspetivas múltiplas. Os territórios não são uniformes nem uníssonos e são constituídos por uma massa diversa de caminhos. Temo sempre a simplificação redutora dos discursos dos territórios: a capital da bilha, do bacalhau, dos Templários e de tantas outras marcas de uniformização e de exclusão.
Desde que exista um equilíbrio entre as partes, a abertura cultural é sempre bem-vinda. Não devemos ter medo de mexer no legado que herdámos. A cultura dos lugares, apesar de ser anterior à nossa existência, tem de ser vista como um efeito da nossa ação e não como um princípio. Mas para tal, a interferência deve ser feita por dentro, com a propriedade que advém do conhecimento e da pertença. Tem de vir de um lugar terno, de quem a vê de dentro, mas que anseia a inevitável mudança.
Surgem cada vez mais iniciativas culturais dos municípios para a área da cultura na tentativa de evocar uma identidade perdida. Contudo, correndo o risco das generalizações, a maioria destas iniciativas prende-se com a revisitação e com o «fazer de conta» de que estamos no passado. Não falam do hoje, não enfrentam a inevitável realidade para a necessária mudança. Por outro lado, na quase inexistência de estruturas artísticas contemporâneas profissionais na grande parte do território, as associações culturais locais continuam estoicamente nos processos do «antigamente era assim» ou na luta diária para manter em funcionamento os seus lugares de encontro, disfarçados de bares e de parcos salões de jogos.
Nos grandes planos de resiliência, nas linhas de apoio para o pinhal interior e nos diversos fundos disponíveis não existe uma linha sobre cultura. Este fator insólito revela, uma vez mais, o desconhecimento generalizado da importância da cultura para a atratividade dos territórios, para a qualidade de vida das comunidades e para a existência de futuro nestes lugares desesperançados. A cultura em geral e a arte em particular são um caminho necessário para o diagnóstico, para a restruturação das comunidades e, principalmente, para evidenciar caminhos. Primeiro, a cultura e, depois, o turismo. Qualquer sociedade de bem-estar, e com algo para dizer ao mundo, é atrativa. Fixa e convoca pessoas. Não acredito em modelos de desenvolvimento que não envolvam as comunidades residentes. Só assim o apregoado sucesso será sinónimo de qualidade de vida.
As comunidades estão enfraquecidas. Dezenas largas de municípios não chegam aos 10 000 habitantes. As câmaras substituem a sociedade civil e tornam-se demasiado magnânimas e uniformizam os territórios. É urgente o incentivo para a iniciativas de base local que promovam novos centros, novos discursos e futuros para estas paisagens (ainda) humanizadas.
-Sobre o Luís Sousa Ferreira-
Formado em design industrial, é o diretor do 23 Milhas e fundador do festival Bons Sons. Não acredita que a cultura em Portugal precise de uma revolução, mas sim de uma mudança de prisma. É o autor da crónica «Disco Riscado» na Revista Gerador.