*Esta é uma crónica do Luís Sousa Ferreira, inicialmente publicada na Revista Gerador de março, lançada no dia 6 de março de 2020
Gosto de conhecer as cidades a caminhar ou a correr. É a melhor forma de perceber os seus não-lugares e conhecer as distâncias que as formam e lhe conferem, ou não, uma escala humana. Mas as cidades ainda estão desenhadas para automóveis. Não comportam uma vivência pedonal acessível, lugares de estar e verdadeiros espaços públicos.
Na última década conquistou-se a rua, numa perspetiva comercial é certo, muito a reboque dos fluxos turísticos, mas demonstrando as potencialidades da sua fruição. Não é, pois, descabido considerar que o turismo abriu a rua aos próprios portugueses. A ocupação da via pública por quem já não teme ser acusado de ajuntamento ou de ócio desenvergonhado peca pela ausência de um pensamento integrado. O espaço aberto não pode ficar aprisionado em esplanadas e feiras.
O espaço público é muito mais do que um espaço acessível, é um espaço de encontro. Para tanto, precisa de estar dotado de tudo aquilo que permita criar encontros espontâneos baseados nas trocas culturais.
Há certos desenhos de cidade que a podem tornar mais doméstica por compreenderem a rua como uma extensão amigável das habitações e dos equipamentos públicos. Contudo, esta consciência esbarra na ausência de estratégias urbanísticas e de mobilidade. Estamos a deixar que as vontades individuais marquem os avanços das cidades sem a compreensão de um projeto agregador, à semelhança do que acontece um pouco por toda a Europa.
O desenho não é fácil, mas há muito que se pode fazer para minimizar os acidentes geográficos de boa parte das cidades portuguesas. Impressiona, por exemplo, que num país marcadamente rural e com orgulho no seu sol, não exista um contacto regular com a natureza. O planeamento do território é essencial para a criação efetiva da democracia que ambicionamos.
Há que transformar as ruas em corredores e as praças em salas de estar. Há que incluir rotinas, atividades desportivas e culturais, promover outros modelos de mobilidade, diversificar e não especializar quarteirões.
Habitar a rua é a melhor forma de respeitarmos a coisa pública. É a oportunidade para conhecermos outras realidades e invertermos as dinâmicas setoriais do multiculturalismo. É a possibilidade de reaver hábitos de bairro, de vizinhança e de entreajuda. É a procura do «eu» no «outro», é o despertar a curiosidade sobre o desconhecido e a criação de comunidades que se apropriam do espaço, tornando-o, verdadeiramente, público.
-Sobre o Luís Sousa Ferreira-
Formado em design industrial, é o diretor do 23 Milhas e fundador do festival Bons Sons. Não acredita que a cultura em Portugal precise de uma revolução, mas sim de uma mudança de prisma. É o autor da crónica «Disco Riscado» na Revista Gerador.