*Esta é uma crónica da Luís Sousa Ferreira, inicialmente publicada na Revista Gerador de maio.
Hoje, 25 de abril de 2021, atravesso meio Portugal para ir celebrar o dia da Liberdade com os meus. Saí bem cedo do Porto rumo a Cem Soldos. Na rádio, sintonizei os discursos das cerimónias da Assembleia da República. Fiquei impressionado. Fora um ou outro discurso mais reacionário, senti contemporaneidade naqueles testemunhos. Estava a falar-se de hoje, das memórias de hoje, dos problemas de hoje e dos anseios de hoje. Curiosamente, todos recorreram à poesia para melhor ilustrar o que diziam. Afinal, não há revolução sem poesia e é na poesia que a revolução permanece. A cultura também alimenta o encontro a partir de códigos e sentimentos comuns. A emoção partilhada ao cantarmos as nossas músicas; o arrepio que se sente ao ouvir o marchar do «Grândola»; a esperança que se renova a ver as fotografias e os filmes daqueles tempos; a mobilização provocada pelos murais e pelas instalações artísticas de então. Há sonho nesta história e esta permanece nos olhares da arte. É ainda graças a ele [ao sonho] que vamos conseguindo atualizar as celebrações de liberdade. Contudo, temo que aconteça às celebrações do 25 Abril o que tem acontecido a quase todas as práticas da cultura popular em Portugal: uma cristalização progressiva que destitui a celebração de sentido, transformando-a em algo obsoleto e datado. Não há data para a liberdade, mas há que celebrá-la hoje. Com memória? Claro. Ou não fosse a memória uma forma contemporânea de olhar o passado.
São cada vez mais comuns os discursos martelados naquilo que é o lugar da mobilização. Se a liberdade é uma luta global, esta não pode ter forma única. Terá de viver num conceito que albergue toda a diversidade das vozes que constituem um povo. E se é de lutas que falamos, o desânimo é a maior arma para aqueles que beneficiam do empobrecimento desta multiplicidade. Já não falamos “apenas” de lutas de classes, nem o acesso à esfera pública se baseia apenas em garantias económicas. Há que estar atento aos novos desafios da liberdade e entender que não se constroem novas manifestações com frases velhas. Com discursos de alguém que fala para ter razão, mas que não está efetivamente preocupado com o encontro.
Recordo-me várias vezes do filme No, do realizador Pablo Larraín, baseado num dos mais importantes acontecimentos da história do Chile: o referendo que pôs fim à ditadura militar de Pinochet. Uma abordagem completamente inovadora que conjugou o olhar de um jovem publicitário, inspirado nas suas referências artísticas, e que, contra todas as expectativas, pôs fim a 17 anos de ditadura. Uma mensagem fresca, centrada no essencial, conseguiu tocar e mobilizar um país. O slogan «Chile, a alegria já vem», uma música orelhuda, danças, alegria e a icónica imagem de um arco-íris foram a conjugação perfeita e corajosa, pelo seu arrojo, para transmitir a esperança que todos queriam viver.
A democracia trouxe-nos claros avanços na educação e na cultura, na saúde e no bem-estar, nos direitos e na liberdade, na inclusão e nos apoios sociais, mas existe ainda um grande percurso a percorrer. Temos de fazer a devida reflexão para entender porque é que existem pessoas que acham que é o populismo, e até o fascismo, a solução para as suas vidas. Temos de perceber o porquê e não ceder ao fascínio hollywoodesco dos bons e dos maus, do eles e do nós. Estamos mal-habituados e no calor do debate somos empurrados para as dicotomias, para as escolhas entre os extremos, para a polarização das opiniões. Ficamos mais pobres quando não nos esforçamos ao encontro e à compreensão tanto de outros pontos de vista como de outras prioridades. E assim, podemos cair também no mesmo vício das falácias populistas ao não aplicar os princípios básicos que constituem a democracia. Pode um sistema democrático desistir de pessoas? Só acrescentamos a democracia a partir dela, não em vez dela. Temos que estar atentos aos sinais.
O mantra dos discursos da rádio, pouco a pouco, ia fundindo-se com a paisagem que me acompanhou na A1 e na A13. Sem poesia, esta paisagem traduzia-me um Portugal sem projeto. Entre barreiras acústicas, que mais se assemelham a muros, provas vivas da constante ausência de planeamento urbanístico, e um imenso mar sem fim de eucaliptos. Em quase todos os discursos, surgia sempre o fantasma do populismo. Reforçava-se que a liberdade não é um bem garantido e que teremos de estar alerta para os sinais. E era isso que estava a fazer na minha condução solitária. A ouvir Lisboa na rádio e a ver o centro de Portugal sem a liberdade de um projeto. Não serão esses os sinais?
Nota: O texto foi escrito no dia 25 de abril de 2021.
-Sobre o Luís Sousa Ferreira-
Formado em design industrial, é o diretor do 23 Milhas e fundador do festival Bons Sons. Não acredita que a cultura em Portugal precise de uma revolução, mas sim de uma mudança de prisma. É o autor da crónica «Disco Riscado» na Revista Gerador.