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Eu não sou o ‘Outro’. Estranhos e Ausentes no Portugal a Lápis de Cor

-Viu aquela fotografia? – pergunta. – O mais importante não eram as pessoas que apareciam…

Texto de Clara Amante

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-Viu aquela fotografia? - pergunta. -

O mais importante não eram as pessoas que apareciam na imagem.

Eram as que faltavam.

Mia Couto, 2020, pp.67

            Enquanto escrevo esta reflexão que almejo partilhável e sentida por muitos leitores, não posso deixar de lado alguma celeuma em torno do pedido do músico português Dino D’Santiago[1], que nos convocou para a necessidade de criarmos um novo  Hino português, com uma letra mais contemporânea e adequada ao nosso presente. Mas, qual presente? Este em que ainda nos confrontamos com longos silêncios e esquecimentos do que somos em relação ao nosso passado colonial? Este presente em que, ainda, está por cumprir uma cidadania plural, diversa e multicultural? Perdoem-me começar esta reflexão com perguntas, como se daquelas quisesse de sopetão tirar algumas conclusões.  Mas, na verdade, parece-me bastante infrutífero e precoce começarmos por um hino, quando no nosso dia-a-dia ainda nos deparamos com a cegueira entre nós portugueses. Sim, estranhamento entre portugueses que não se percepcionam como fazendo parte de uma mesma moldura histórica, desse encontro longínquo e antigo no tempo e que fez de nós todos gente tão misturada que se torna quase uma estupidez a persistência de uma classificação entre portugueses e os ‘Outros’.  Mas, na verdade é aqui que está o espinho desta nossa avidez, a de nos imaginarmos melhor do aqueles que assumimos como diferentes à luz de dimensões como a cor da pele, a fisionomia, o estatuto sócio-económico, o local onde estudamos, onde habitamos, dimensões que vamos absorvendo e construindo como pilares culturais e identitários que nos hierarquizam e nos distinguem como melhores, mais civilizados e mais fortes. 

            A memória é um assunto delicado e complexo para o ser humano. Somos altamente seletivos e comprometidos com uma determinada narrativa mais luminosa e enriquecedora da nossa história. Em O Esplendor de Portugal, o escritor António Lobo Antunes (1997) tece uma das mais audazes e verdadeiras características não apenas dos portugueses brancos no Ultramar, mas, certamente do ser humano, isto é o comportamento de quem tem ou pensa que tem poder. Neste romance em torno dos momentos finais da guerra colonial e do primórdios da guerra civil em Angola, os vários personagens vão desconstruindo o imaginário de grandeza, de império encurralado nas mentes daqueles que do pouco que detinham sentiam que eram grandes senhores de uma terra que não lhes pertencia. Com rigor, fomos descalçando da nossa visão histórica o que na verdade sempre fomos: pequenos para os europeus e poderosos para aqueles que por nós eram espoliados e subordinados na experiência de uma falácia de domínio. As independências dos nossos territórios colonizados demonstraram-nos que estávamos longe de ser um corpo nacional coeso (Khan, 2009, 2015). Pelo contrário, a chegada de milhares de retornados como de muitos africanos e de indianos reféns dessa grandiosidade portuguesa descarrilou em realidades abissais entre si (Figueiredo, 2022, Martins, 2015). Fomos alinhavando entre nós com a chegada da democracia em Portugal, esta convicção de que estávamos preparados para acolhermos a diversidade, a diferença entre nós. Mas na verdade, o que fazemos é apenas tricotar com retórica diplomática enriquecida com instituições fracas esta versão de um país pós-colonial, multicultural e cosmopolita. Os nossos currículos não nos ensinam nada do que fomos e do que somos; as nossas instituições permanecem grandes arautos de racismo e de discriminação. Os nossos media são todos homogéneos no seu corpo profissional. Enquanto estivermos demasiado suscetíveis ao aspecto dos outros, ou permanecermos estupefactos por termos uma Joacine Katar Moreira como deputada, uma Francisca Van Dúnem como ministra da Justiça, enquanto não virmos nos principais meios de comunicação, nas nossas universidades, nos lugares de destaque da política e da cidadania essa verdadeira ecologia de pessoas e de saberes, estaremos longe das intenções vibrantes com que cantamos e nos emocionamos com o Hino Português.

A multiplicidade humana deste Portugal ainda está muito esbatida e encolhida numa visão monocromática, onde a igualdade entre todos é apenas uma nota de rodapé no que poderíamos designar como um Portugal a Lápis de Cor. Como tão bem observou a estudiosa Manuela Cruzeiro, “somos exímios gestores do silêncio, mesmo quando falamos” (2004, p.31). E a verdade é que neste que é um Portugal democrático, muitos foram ficando pelo caminho, as suas histórias, as suas memórias, as suas experiências tão relevantes para comporem e enriquecerem o grande mosaico humanamente colorido que é a historicidade portuguesa (Khan, 2015). Porém, é inevitável fugir aos esquecimentos e às ausências validadas e consentidas. Hoje, mais do que nunca, novas vozes emanam uma força e uma vitalidade incrível, porta vozes  de um dever de memória e de reparação histórica (Khan, 2021,Vasconcelos, 2022) com os quais será bem mais inteira e lúcida a oportunidade de repensar e de reformular o hino português. Se não tocarmos com a nossa consciência nesta ferida que é solidão pós-colonial (Khan, 2021), desconhecimento histórico e estranheza sem fraternidade, não valerá o esforço de um novo hino. É preciso sentir o caroço duro desta que é a nossa realidade pós-colonial portuguesa, onde evitamos falar de crime racial[2], onde dizemos a uns e outros ‘preto vai para a tua terra’.

Quando a diversidade se cumprir e nos pertencer com transparência e cidadania concreta, aí sim, arregaço as mangas e sento-me a aprender, como  n’Os Meninos do Huambo[3]: “coisas de sonho e de verdade (...)/ como se ganha uma bandeira/ (...) o que custou a liberdade”.

Referências Bibliográficas

Antunes, António Lobo. (1997).O Esplendor de Portugal. Lisboa: Dom Quixote.

Couto, Mia. (2020). O Mapeador de ausências. Lisboa: Caminho.

Cruzeiro, Maria Manuela. (2004). As mulheres e a Guerra Colonial: Um silêncio demasiado ruidoso. Revista Crítica de Ciências Sociais, 68, 31-41. DOI : 10.4000/rccs.1077

Figueiredo, Isabela. (2022). Um cão no meio do caminho. Lisboa: Caminho.

Khan, Sheila. (2021). Cartas, solidão e voz para uma pós-memória: Maremoto de Djaimilia Pereira de Almeida. Abril – NEPA / UFF 13(27).

DOI: https://doi.org/10.22409/abriluff.v13i27.50266

Khan, Sheila. (2015). Portugal a lápis de cor: a sul de uma pós-colonialidade. Coimbra: Almedina.

Khan, Sheila. (2009). Imigrantes Africanos Moçambiçanos. Narrativa de Imigração e de Identidade e Estratégias de Aculturação em Portugal e na Inglaterra.Lisboa: Colibri.

Martins. B. S. (2015). Violência colonial e testemunho: Para uma memória pós-abissal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 106, 105-126. DOI : 10.4000/rccs.5904

Vasconcelos, Álvaro. (2022). Memórias em Tempo de Amnésia. Uma campa em África, vol.1. Porto: Afrontamento.


[1]https://expresso.pt/blitz/2023-01-06-Dino-DSantiago-lanca-desafio-para-criacao-de-novo-hino-nacional-0e6884fb

[2] Penso nos vários crimes raciais, nomeadamente, no primeiro compromisso em pensar a partir da morte de Alcindo Monteiro, jovem português de ascendência caboverdiana assassinado por um grupo de nacionalistas skinheads no dia 10 de Junho de 1995. Miguel Dores, apresenta, a partir de um documentário notável com o título “Alcindo”, um mapeamento deste Portugal pós-colonial e de todo o seu pacto de silêncio em torno da sobrevivência de lógicas de racialização e de discriminação

(https://www.youtube.com/watch?v=O9ARvQ7gUYs).

[3] Letra do escritor angolano Manuel Rui, cantada por Ruy Mingas e Paulo de Carvalho (https://www.youtube.com/watch?v=D_naXf_c6As).

- Sobre a Sheila Khan -

Sheila Khan é socióloga, investigadora do Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade  da  Universidade  do  Minho,  professora  auxiliar  convidada  da  Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e comentadora do painel do programa Debate Africano na RDP África. É doutora em estudos étnicos e culturais pela Universidade de Warwick. Membro de investigação no âmbito do projeto “MigraMediaActs – Migrações, media e ativismos em língua portuguesa: descolonizar paisagens mediáticas e imaginar futuros alternativos” (CECS, Un. Minho). As  suas  mais  recentes  publicações  são: Portugal  a  Lápis  de  Cor.  A  Sul  de  uma  Pós-Colonialidade (Almedina,  2015); Visitas  a  João  Paulo  Borges  Coelho.  Leituras,  Diálogos  e Futuros (eds. com Nazir Can, Sandra Sousa, Leonor Simas-Almeida e Isabel Ferreira Gould, Colibri, 2017); O Mundo na Europa: Crises e Identidade (eds. com Rita Ribeiro e Vítor Sousa, Húmus,  2020); Racism  and  Racial  Surveillance.  Modernity  Matters (eds. com  Nazir  Can  e Helena Machado, Routledge, 2021); ‘Reparações Históricas: Desestabilizando Construções do Passado Colonial’, Revista Comunicação e Sociedade, vol.41 (eds., com Vítor Sousa e Pedro Schacht Pereira); Djaimilia Pereira de Almeida: Tecelã de Mundos Passados e Presentes (eds. com Sandra Sousa, no prelo, 2023); finalmente, 'Pós-Memórias no feminino. Vozes e Experiências na Gramática do Mundo', Revista ex-aequo (eds. com Susana Pimenta e Sandra Sousa, no prelo, junho, 2023).

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