Espero, impaciente, no Foyer do Sadler’s Wells pela hora do espetáculo começar. Enquanto olho para o relógio, folheio o programa recebido à entrada e cruzo o meu olhar com palavras aliciantes que me alimentam a expectativa sobre o que vou ver em palco. E assim que essas palavras começam a dançar na minha cabeça, a porta finalmente abre. Encontro o meu lugar e sento-me. Retiro o meu bloco e procuro páginas em branco entre rabiscos de notas tiradas na escuridão da plateia. A luz vai baixando de intensidade. Tenho a caneta pronta. Esta noite é especial: vou assistir pela primeira vez ao vivo a um espetáculo da Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, companhia fundada pela icónica coreógrafa alemã Pina Bausch, e vou escrever sobre ele. Ao meu lado, jornalistas e críticos começam as suas frenéticas anotações assim que a luz se apaga e a cortina se abre — mas eu estou hesitante. ‘Bluebeard’ começa e as palavras fogem-me. O meu corpo está conectado à crueza e intensidade dos movimentos. A minha mente divaga pelas múltiplas sensações que a peça me faz sentir. Como vou transformar todo este turbilhão de emoções em texto?
Há uma grande limitação nas palavras quando queremos traduzir movimento. Mas é precisamente aí que encontramos o interesse em escrever, não só sobre dança, mas sobretudo a partir da dança. Considerada por muitos como a forma mais básica de comunicação humana, estando presente em todas as culturas, a dança é ao mesmo tempo uma das expressões artísticas mais difíceis de consumir e apreciar, principalmente quando falamos em dança contemporânea. E isso acontece porque o público é muitas vezes privado de um contexto. Esquecemo-nos frequentemente de que a escrita, aliada à dança, tem o poder de democratizar a experiência artística. Quando escrevemos, para quem escrevemos? Quando dançamos, porque dançamos? Se formos capazes de responder a estas duas questões, somos então capazes de aproximar o público do artista e da performance. Tornamos a dança mais acessível, embora sem a banalizar, mas sim enaltecendo o seu valor.
Quando vemos um espetáculo de dança, há vários fatores que devemos ter em atenção. Temos os cenários e os figurinos, temos a qualidade de movimento e as motivações, que muitas vezes nos transportam para questões políticas, sociais, individuais ou coletivas. Há algo que o coreógrafo nos quer dizer e que vai além da estética do movimento. No limite, são essas mesmas questões que estão na origem da criação do próprio movimento, de toda a coreografia. Se nos for privado o ponto de vista do coreógrafo, somos distanciados de todo o potencial que a dança nos pode dar. Não conectamos um movimento a nada mais do que a ele mesmo. Não somos capazes de traduzir o que está em palco. E tudo isto acontece quando nos faltam as palavras.
Escrever sobre e a partir da dança traz ainda consigo uma outra forma de olhar para as palavras e para a forma como escrevemos. A dança exige que um texto encontre mais ritmo, dinâmica, ação. Movimento em cada linha. Quando escrevemos acerca de dança, devemos ser coreógrafos textuais, criar a partir da multiplicidade de léxico, gramática, narrativa. Devemos olhar para o que a dança e a escrita têm em comum. Um sujeito/ação numa frase é um corpo/movimento em palco. Se as palavras nos falham a dizer-nos o que é o movimento, conseguem dizer-nos como é o movimento. A linguagem aproxima-nos do movimento na sua capacidade descritiva e de criação de imagens, que transportam o leitor para as inúmeras experiências que a dança lhe pode oferecer.
Martha Graham, um dos grandes nomes da Dança Moderna, deixou-nos a célebre frase — “A dança é a linguagem escondida da alma”. Apesar de nunca conseguirmos transcrever exatamente o caráter inato da dança, podemos captar a sua essência e levá-la aos outros, palavra a palavra, movimento a movimento. Coreografar a escrita expande as possibilidades do que a dança pode representar numa sociedade. Pode aproximar-nos, dar-nos novos pensamentos, sensações. Pode dar-nos mais humanidade.
-Sobre Inês Carvalho-
Inês é bailarina e professora, gestora de comunicação cultural e escreve regularmente sobre o que mais gosta: dança. A mente inquieta levou-a a criar a agência de comunicação Diagonal Dance. O corpo inquieto levou-a a dividir o seu tempo entre Portugal e o Reino Unido.