Quando pensamos em dança, é quase inevitável não pensarmos igualmente em música. Apesar de duas expressões artísticas diferentes, é na sua interdependência que encontramos novas formas de movimento e novas criações. São muitos os coreógrafos e bailarinos que olham para a dança como a concretização da música, sobretudo nos bailados clássicos onde o movimento é influenciado pela música. Porém, a revolucionária dança contemporânea abriu a relação ‘dança-música’ e impulsionou novas possibilidades, como o movimento com total independência (ou mesmo ausência) de música, ou mesmo a partilha de um processo criativo simultâneo.
É precisamente este último processo que mais me cativa quando penso na relação entre sonoridade e movimento, pela oportunidade de uma criação artística em sintonia, em que ambas as áreas se completam, se inspiram e se constroem mutuamente. É cada vez mais comum encontrar coreógrafos que desenvolvem os seus projetos em simultâneo com composição musical, trazendo instrumentos musicais para o palco e criando uma atmosfera em que músicos e bailarinos se fundem na mesma expressão.
O impacto de combinar a criação musical e coreográfica em simultâneo começa muito antes do resultado final apresentado em palco. O ponto de partida é muitas vezes identificar e estabelecer uma forma clara de comunicação e produção entre ambas as áreas. Para saber mais sobre a experiência de criar uma peça coreográfica e musical ao mesmo tempo, falei com o compositor italiano Angelo Naso, que não hesita em dizer-nos qual é o ponto de ligação entre movimento e música: o tempo. “São duas formas de arte que se desenvolvem no tempo. Esse é o grande estímulo para sincronizar a música e a dança. A música desenvolve-se no tempo. A dança desenvolve-se no tempo e no espaço. E a partir daí conseguimos criar uma ligação, que pode ser mais tradicional com uma música que seja sincronizada com a dança. Mas podemos também partir de um conceito ou uma ideia e pensar como este conceito pode ser apresentado na música e no corpo através do movimento”.
Em conjunto com o Angelo Naso, desenvolvi pela primeira vez um projeto coreográfico com composição musical original, onde as duas áreas foram desenvolvidas ao mesmo tempo. A linha conceptual foi a base de inspiração para ambos, já que não havia qualquer movimento pensado, nem mesmo uma melodia base. Seguindo essa linha conceptual, foi criada uma estética que permitiu partir para a criação. A partilha foi essencial desde o início: as ideias eram debatidas em conjunto e o processo de cada um constantemente partilhado. A peça foi ganhando forma gradualmente e sempre com o movimento a acompanhar a música e vice-versa.
Um processo criativo que é dependente de outro evoca a necessidade de manter uma unidade e um equilíbrio. Caso contrário, há o risco de se afastarem. Um coreógrafo e um compositor podem ter ideias que não funcionem juntas, mesmo que partam da mesma fonte de inspiração. É por isso imprescindível adaptar ou recomeçar constantemente, o que só é possível quando as duas áreas se escutam e respeitam mutuamente. Por essa razão, a comunicação é crucial ao longo de todo o processo - cada área tem de conhecer melhor a outra, de forma a compreender todas as potencialidades e problemas.
Quando as duas áreas se ouvem e inspiram, o resultado é enriquecedor, não só para os criadores, mas sobretudo para os espectadores. Tal como nos diz o Angelo Naso, “o maior benefício de criar música e dança ao mesmo tempo é que os artistas aprofundam o seu conhecimento sobre outras formas de arte. Os músicos acabam por conhecer melhor o mundo da dança e vice-versa. Para o público, há o prazer de ver duas formas diferentes de arte no mesmo espetáculo, que estão a combinar as energias e forças para criar algo novo e diferente. Esta interação entre os dois mundos enriquece muito o produto final e a perspetiva do público sobre cada uma das áreas. Um espectador regular de música pode nunca ter visto um espetáculo de dança ou um espectador de dança pode descobrir algo na música que não conhecia. É uma fusão que dá muito as todas as partes do espetáculo”.
A experiência artística que combina música e dança vai resultar numa obra única. A forma como estabelecemos a ligação entre ambas pode ditar todo o processo criativo. Inspirar-nos na música, no movimento, ou em ambos, vai acrescentar valor a todos os agentes do processo: criadores, intérpretes, produtores e público.
-Sobre Inês Carvalho-
Inês é bailarina e professora, gestora de comunicação cultural e escreve regularmente sobre o que mais gosta: dança. A mente inquieta levou-a a criar a agência de comunicação Diagonal Dance. O corpo inquieto levou-a a dividir o seu tempo entre Portugal e o Reino Unido.