Assinalou-se, esta semana (25 de maio), um ano desde o assassinato de George Floyd e da consequente onda de protestos do movimento Black Lives Matter, que alcançou uma escala global e validou a urgência em se falar, refletir e erradicar atos de discriminação racial. Nas estruturas organizacionais, veio impulsionar novas conversas sobre inclusão e diversidade. Na cultura, foi o grande tema que marcou o último ano, de acordo com a revista Britânica ArtReview e o seu ranking anual das personalidades mais influentes no setor artístico. Também na dança, foram várias as discussões em torno da falta de diversidade do setor e das práticas de racismo estrutural. E foram muitas as respostas por parte dos artistas, que mostraram através do seu trabalho a importância de descolonizarmos o nosso movimento para permitirmos novas vozes e novos corpos em palco.
No final do ano passado, Chloé Lopes Gomes - a primeira bailarina negra a integrar a Companhia Nacional de ballet Staatsballett de Berlim - denunciou publicamente ter sido vítima de racismo por parte da instituição, tendo ouvido constantemente que a sua cor de pele não era esteticamente aceitável ou até ser obrigada a usar pó de arroz. Testemunhos como este suscitam-nos, inevitavelmente, a seguinte questão: porque não são todos os corpos válidos no mundo da dança?
Procuro esta resposta incansavelmente. E quanto mais procuro, mais me apercebo do quão distante estou da solução. O quão estamos vinculados desde tão cedo ao nosso próprio contexto e como é difícil olharmos para outros da mesma forma. Quanto mais procuro, mais me apercebo de que a dança europeia e o legado do ballet clássico estabeleceram uma estética incapaz de representar a maioria dos corpos e das culturas. De como é tão necessário repensarmos a forma como falamos de movimento. De como precisamos de descolonizar o movimento para permitirmos outras expressões, outras vozes e outras formas de olhar o corpo em palco.
Foi precisamente sobre este tópico que me debrucei numa recente entrevista com a célebre coreógrafa Lia Rodrigues. Quando questionada sobre a dança contemporânea no Brasil, não hesitou em relembrar-me da pluralidade de movimentos que a tornam tão diversa e, por isso, incapaz de ser traduzida num único contexto. Dirigindo há mais de trinta anos a Lia Rodrigues Companhia de Danças, a artista sublinhou ao longo da nossa conversa a importância de olharmos para a dança de uma forma plural e capaz de atender a vários contextos, desde o social, financeiro ou cultural. E como a terminologia pode ter um papel relevante na implementação de maior diversidade na dança. Quando falamos de dança, de que dança estamos a falar? Qual o seu contexto e relações de força e poder? A forma como falamos de dança reflete a nossa posição no mundo e, por essa razão, Lia Rodrigues deixou o apelo para que se fale em ‘danças’, em mudar a terminologia para alargar o imaginário da dança contemporânea.
Mas como podemos descolonizar o movimento? Em primeiro lugar, aceitando que o nosso conceito de “dança” não é único e que a dança contemporânea vai muito além do que vemos regularmente apresentado em salas de espetáculo. Procurando essas vozes tantas vezes silenciadas e promovê-las. Defender uma programação cultural mais diversa e com oportunidades para criar novas conversas e levantar questões. Ao mesmo tempo, descolonizar o movimento pode também partir de nós, começando por descolonizar o nosso próprio corpo e as ideias estéticas que procuramos sempre ver em palco. Descolonizar o movimento passa também por uma educação mais variada e que inclua no currículo de formação em dança outros estilos, outras representações de movimento. Uma formação mais diversa em dança trará a palco profissionais globais e portadores de inúmeros contextos nos seus corpos.
Na semana em que o Black Lives Matter é novamente o principal tópico de conversa, recordo que o corpo é também uma poderosa forma de ativismo. Descolonizar a nossa sociedade pode - e deve - ser uma questão explorada no movimento, criando espaços seguros para expressar a pluralidade que compõe a nossa sociedade.
-Sobre Inês Carvalho-
Inês é bailarina e professora, gestora de comunicação cultural e escreve regularmente sobre o que mais gosta: dança. A mente inquieta levou-a a criar a agência de comunicação Diagonal Dance. O corpo inquieto levou-a a dividir o seu tempo entre Portugal e o Reino Unido.