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Lusotropicalismo no cinema pós-colonial

Patrícia Sequeira, professora auxiliar convidada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigadora integrada no CEIS20, problematiza, neste ensaio, a relação do cinema e da imagem com o poder colonial.

Texto de Clara Amante

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Ao leccionar na área de estudos portugueses no Reino Unido, constatei a adoção de “um prisma pós-colonial” nas mais variadas áreas científicas em Portugal (Vieira, 2015, 275). Esse mesmo prisma foi também adoptado pelo cinema e artes visuais nos últimos anos, e por essa razão, reconheço a emergência de um giro pós-colonial nas instituições académicas e na produção audiovisual e artística (Sequeira Brás, 2022). Contudo, alguns académicos portugueses reproduzem ainda fantasias luso-tropicalistas, ora exaltando a suposta benevolência colonial portuguesa ora insistindo em usar a palavra “descoberta” quando se referindo ao empreendedorismo colonial português (Saraiva, 2018).

A ideia de que o colonialismo português foi excepcionalmente benevolente prevalece no nosso imaginário contemporâneo graças ao mito do luso-tropicalismo, forjado pelo Estado Novo nos anos 50 (Vale de Almeida, 2004; Schacht Pereira, Gomes Coelho, Martins Marcos e Beleza Barreiros, 2020; entre outros). O giro pós-colonial na cultura visual e discursiva em Portugal torna-se urgente, no sentido de desmistificar o discurso luso-tropicalista e corrigir a narrativa oficial colonial, contribuindo assim, não apenas para o reconhecimento do passado violento do colonialismo português mas também da violência contínua materializada nas existentes desigualdades sociais e raciais da contemporaneidade. Como já tive oportunidade de referir (Sequeira Brás, 2022), este giro pós-colonial responde também à necessidade de inscrever a narrativa nacional portuguesa num mundo cada vez mais global e da subordinação da cultura “às leis do mercado” e mercantilização da educação .

O cinema tem sido um instrumento de poder (Stam, 2000), e não é apenas contemporâneo do imperialismo como também serviu o propósito da pilhagem colonial. Ariella Aïsha Azoulay (2021) defende, por exemplo, que o advento da fotografia está entrelaçado com a história do colonialismo; e afirma que a fotografia surgiu da necessidade colonial de documentar, classificar e preservar a pilhagem colonial. A fotografia replicou assim a extração de recursos naturais e capital humano dos territórios colonizados. É, portanto, uma tecnologia que não pode ser descolonizada sem primeiro abolirmos as práticas imperialistas que permeiam a nossa cultura e consequentemente os seus regimes de representação.

Segundo Stuart Hall, o poder deve ser entendido “não apenas em termos de exploração econômica e coerção física, mas também em termos culturais ou simbólicos” (2003, 259). Os regimes de representação reforçam as estruturas de poder. Considerando que toda a representação é ambivalente, pois o significado nunca é fixo, defendo que esta crescente proliferação de objetos audiovisuais dedicados ao passado colonial português e suas heranças tende a reproduzir um regime colonial de representação. Em muitas destas práticas artísticas e discursivas constato que o problema da legitimidade foi frequentemente ignorado, até recentemente, levando-me a questionar: quem tem o direito de falar sobre os outros? Por outro lado, pouco se reflete também sobre a relação intrínseca entre produção visual e conhecimento, entre produção visual e poder. Hall defende que a “circularidade do poder é especialmente importante no contexto da representação”, pois apesar de todos implicados, nem todos somos igualmente retidos nessa circularidade (2003, p. 261 ). Da mesma forma, Nicholas Mirzoeff esclarece que a visualidade tem complementado a autoridade e violência colonial porque, segundo ele, a visualidade “sutura a autoridade ao poder” (2011, p. 6). O direito a olhar e/ou falar sobre o sujeito racializado e/ou colonizado reclama uma autonomia face às estruturas de poder, autonomia que o artista e/ou o intelectual dificilmente poderão reivindicar. Dentro da variedade de imagens que abordam o passado colonial português, a posição do sujeito/falante permaneceu, até recentemente, num ângulo morto. E, como já tive oportunidade também de defender, nessas imagens que proliferam o cinema e artes visuais em Portugal identifico uma ambivalência colonial que subsiste apesar da aparente crítica pós-colonial.

Tendo em conta a relação histórica entre cinema e poder colonial e a maneira como a imagem pode reproduzir, ao invés de expor, relações de poder, considero que a proliferação e disseminação de imagens fotográficas e/ou em movimento vis a vis o passado colonial português e as desigualdades raciais e sociais na sociedade portuguesa pós-colonial são também, muitas vezes, uma tentativa de ganhar relevância cultural num mercado académico e artístico cada vez mais global. A proliferação deste tipo de imagens no cinema e nas artes visuais em Portugal está mais próxima da reificação do que da equidade representativa; e por isso, considero necessário refletir sobre a forma como a ambivalência colonial permeia ainda as nossas práticas artísticas e discursivas, mesmo quando se propõem questionar o mito luso-tropicalista no qual foi forjada a excepcionalidade benevolente do colonialismo português.

- Sobre Patrícia Sequeira Brás -
Patrícia Sequeira Brás é professora auxiliar convidada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigadora integrada no CEIS20. Lecionou em Queen Mary e Birkbeck, na Universidade de Londres e na Universidade de Exeter, no Reino Unido. E foi investigadora assistente na Universidade Lusófona de Lisboa até 2022. A sua primeira monografia The Political Gesture in Pedro Costa’s Films será publicada na série New Studies in European Cinema da Peter Lang em 2023. A relação entre política e cinema que motivou o seu doutoramento continua a moldar os seus novos projetos de investigação. Os seus interesses de pesquisa incluem feminismo e estudos de gênero, temporalidade fílmica e colonialidade visual.

Referências bibliográficas

Azoulay, Ariella Aïsha (2021). Toward the abolition of photography’s imperial rights. In K. Coleman & D. James (eds.), Capitalism and the camera (pp. 72–128). Londres, Nova Iorque: Verso.
Hall, Stuart. (2003). The spectacle of the other. S. Hall (ed.), Representation: Cultural representations and signifying practices (pp. 223–278). Londres, Thousand Oaks, Nova Deli: Sage Publications.
Mirzoeff, Nicolas. (2011) The right to look, a counterhistory of visuality. Durham: Duke University Press.
Saraiva, J. C. (2018). O polémico museu-fantasma dos descobrimentos. Jornal i, 5 de Maio. Acedido em 29 de junho de 2023. https://ionline.sapo.pt/artigo/610802/o-polemico-museu-fantasma-dos-descobrimentos?seccao=Mais_i
Schacht Pereira, Pedro; Gomes Coelho, Rui; Martins Marcos, Patrícia e Beleza Barreiros, Inês (2020) O padre António Vieira no país dos cordiais, Público, 2 de Fevereiro. Acedido em 29 de junho de 2023. https://www.publico.pt/2020/02/02/sociedade/noticia/padre-antonio-vieira-pais-cordiais-eterna-leveza-anacronismo-guardiaes-consenso-lusotropical-1902135
Sequeira Brás, Patrícia (2022). A Ambivalência Colonial nas Imagens em Movimento Contemporâneas: O Caso Português. V. de Sousa, S. Khan & P. Schacht Pereira (eds.) Comunicação E Sociedade, 41, pp. 91–103. https://doi.org/10.17231/comsoc.41(2022).3698
Vale de Almeida, Miguel (2004). An earth-colored sea: “Race”, culture and the politics of identity in the post-colonial Portuguese-speaking world. Oxford, Nova Iorque: Berghahn.
Vieira, Patrícia (2015). Imperial remains: Postcolonialism in Portuguese literature and cinema. Portuguese Journal of Social Science, 14(3), pp. 275–286. https://doi.org/10.1386/pjss.14.3.275_1

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