*Esta é uma crónica da Sara Barros Leitão, inicialmente publicada na Revista Gerador de outubro.
Logo no primeiro livro da saga Harry Potter ficamos a saber que há um nome que não pode ser dito. Voldemort é um incrível feiticeiro que escolheu passar para o lado das trevas e, desde então, tem tentado recrutar outros para se juntarem ao seu exército, com o objectivo de tomar todo o poder.
No entanto, com esta descrição, quase que poderíamos substituir o seu nome por outros que nos são bem conhecidos, sem desvirtuar a narrativa. A única tragédia é que todos os nomes que me ocorrem são de muggles e a acção não se passa em Hogwarts.
A pergunta «o que há num nome?» foi feita há várias décadas por Julieta, na noite em que se apaixona por Romeu. Pertencem a famílias rivais e vivem, como sabemos, um amor impossível. Julieta vai para a varanda do seu quarto e pergunta-se se uma rosa não teria o mesmo perfume se tivesse outro nome. E, se assim é, o que pode haver num nome? Tudo seria como tem de ser, independentemente do nome que tem. Mesmo que Potter não invocasse o nome do vilão, Voldemort continuaria a existir, continuaria a atacá-lo, e a história seguiria o seu rumo normal, porque é assim que tem de ser.
Fomos avisados por Shakespeare, por J.K.Rowling, por tantos outros: não dizer um nome, não mudará o rumo da história.
Recentemente, assistimos a uma eleição de ascensão surpreendente. Esse-cujo-nome-não-pode-ser-dito soube usar a seu favor a boa e má publicidade. Aprendendo com ele, veio de imediato outro-cujo-nome-também-não-pode-ser-pronunciado, que sabia que não interessa se falam bem ou mal, desde que falem. Para tentar travar este fenómeno criou-se, até, um hashtag para substituir o seu nome e evitar que a argumentação da oposição servisse a seu favor apenas por ser constantemente referenciado.
Em Portugal, ou porque lhe damos protagonismo, ou porque o ignoramos, o que é certo é que o nosso Voldemort já tem lugar na assembleia, ameaça a Constituição, os direitos humanos e institucionaliza o discurso fascista.
Precisamos de ultrapassar a discussão do uso do nome e encontrar uma verdadeira estratégia de combate. Caso contrário, tudo será como tem de ser, e nisso, a história do mundo contemporâneo é um assustador spoiler.
*Texto escrito de acordo com o antigo Acordo Ortográfico
-Sobre a Sara Barros Leitão-
É do Porto, e atualmente trabalha como atriz, criadora, encenadora, assistente de encenação e dramaturga. Feminista, ativista por todas as desigualdades, incoerente e a tentar ser melhor, revolucionária quanto baste, é uma artista difícil de domesticar. É a autora da crónica «Manual de Sobrevivência» na Revista Gerador.