Não queria morrer sem te ver.
Primeiramente, porra.
O pretérito imperfeito cheira a medo e ao respeitinho que ele guarda.
Não sei se te volto a ver e embora tenha umas saudades loucas de te ver dormir, muito sinceramente, não sei se me safo.
Já vi camaradas morrerem a poucos metros de mim e o choro das crianças e das mães não me sai da cabeça. É como um rádio sem o botão de stop. As casas que as pessoas se matam para pagar são mandadas pelos ares em menos de nada e nas ruas, o sangue escorre-lhes pela cara e o medo pelos olhos.
A noite chegou e não sabemos o que a roleta de hoje trará nem se estaremos vivos quando o mundo acordar amanhã.
Penso em ti. Em como levamos a vida com a arrogância de uma certeza arranjada às pressas e forjada a medo, de que vamos viver para sempre. E estas merdas encostam-nos as costas à parede e a espada à garganta. Obrigam-nos a descer do pedestal e a perceber que a nossa existência é efémera. Toda a gente tem um buraco ao fundo das costas, sabes. Mesmo por dentro de fardas verde seco.
Aqui, não somos mais do que carne para canhão, uma trincheira cheia de homens corajosos e cheios de medo de morrer. Sei que como eu, também pensam naqueles que amam. A audição apura-se com o cair da noite e os corações batem mais depressa em jeito de antecipação.
Eu não queria ter que ter uma coragem deste tamanho, não numa guerra com que não concordo, porque a violência nunca resolve nada e o medo é inimigo do amor. Sei que achas que sou uma espécie de herói, mas salvar gaivotas na praia e defender crianças de rufias na rua é diferente. Isto aqui é muito feio. Vemos e ouvimos coisas que a nossa alma nunca vai esquecer. Como é que se vive depois disso? Perdoa-me mas o ser humano é egoísta por natureza e eu ainda quero construir a nossa casa térrea, ver os miúdos que havemos de fazer brincarem livres e felizes, trazer a minha mãe e a minha irmã para perto de mim, o meu pai havia de ficar orgulhoso.
O princípio da inércia diz que as coisas pesadas custam a mover quando estão paradas e a travar quando estão em movimento. Acho que acontece o mesmo com as coisas que, por algum motivo, guardamos dentro de nós e demoramos a agir sobre elas.
Não sei se te volto a ver, mas se sair desta inteiro, juro que vais casar comigo.