*Esta é uma crónica do Pedro Pires, inicialmente publicada na Revista Gerador 38.
Releio As Cidades Invisíveis e imagino-me arquiteto. Italo Calvino criou essa possibilidade. Todos podem pensar uma cidade como, por exemplo, Zenóbia, «embora situada em terreno seco, surge sobre altíssimas palafitas, e as casas são de bambu e de zinco, com muito poleiros e varandas, postas a diferentes alturas, em andas que se sobrepõe umas às outras.» Ou Octávia, cidade teia de aranha, «situada sobre o vácuo, ligada aos dois cumes por teleféricos e correntes e passarelas».
Para além de não perceber como é que ainda ninguém transformou este livro num jogo em que pudéssemos assumir esse papel de arquitetos do absurdo, estamos cada vez mais próximos de soluções imaginadas por ele.
E agora que está tudo a comprar terreno no Decentraland, ou a imaginar projetos imobiliários em Marte, chegou a hora de escrever uma crónica sobre «casas» na Terra.
Existe um enorme entusiasmo por aquilo que podemos classificar de arquitetura de extinção, por mais dramático que isso pareça. Arquitetura que assume os males do antropoceno para desenhar um futuro assente nas suas consequências.
«Design Against Extinction», nas palavras de Mitchell Joachim da Terreform ONE, uma organização non profit formada para combater a extinção de todas as espécies planetárias por meio de atos pioneiros de design em habitats, cidades e paisagens em todo o mundo.
A vida em contextos progressivamente difíceis e socialmente desafiantes é a grande influência de ateliês como BIG, OMA/AMO, External Reference, ecoLogicStudio, os portugueses Mass Lab ou Louise Braverman, autora do centro de artes Nadir Afonso e que nos afirma que
A contextualização é um dos recursos retóricos mais poderosos da ecologia. Se aceitarmos que tudo o que fazemos impacta a nossa comunidade e, em última análise, a Terra, o isolamento e a alienação do indivíduo tornam-se insustentáveis como uma noção, assim como o mal-estar que o acompanha.
Da ideia de codependência entre humanos, espaço e atmosfera, presente nas Foams de Peter Sloterdijk’s ao Aeroceno de Tomás Sarraceno, uma exploração artística que assume que poderemos vir a habitar estruturas aéreas, emerge forte a noção de que a arquitetura é a forma como aprendemos a viver juntos.
Após a primeira ocupação da sociedade alienada e seus trágicos imóveis, que conhecemos como as cidades em crescimento, mais uma vez a terra será desenvolvida e ocupada através da Ueberbauung (sobre-construção), mas desta vez no ar… – Peter Sloterdijk’s, Foam City: About Urban Spatial Multitudes
Tudo isto nos proporciona realidades cada vez mais próximas das cidades relatadas por Marco Polo ao Kublai Kan.
Em 2016, o canal Arte lançou um website – future-living.tv –, que identificava «a uniformidade destrutiva do modelo estandardizado» de desenvolvimento urbano como uma guerra que teria de ser combatida também com a arte e imaginação. É um site-piloto que desafia o visitante a avaliar 20 propostas de pensar a nova cidade inspiradas por espaços reais encontrados em todo o mundo.
Esta tensão alimentada em igual medida pela urgência e pela imaginação, resulta hoje não apenas em reflexão, mas acima de tudo em prática. Microflorestas urbanas, agricultura vertical, a cidade dos 15 minutos, novos bairros flutuantes, edifícios-jardim, bairros comunidade, cidades verticais. Tudo o que já tínhamos imaginado, mais perto da realidade.
Para lá de fascinados com o potencial de criação e modificação, o mais interessante para mim, nestes novos movimentos da arquitetura, é a ideia de codependência.
Ao trabalhar para evitar a extinção, parece que estamos a ser inevitavelmente empurrados uns para os outros. O que nos mata, aproxima-nos.
O pensamento de intimidade coletiva presente em Peter Sloterdijk e Timothy Morton encontra inspiração num conjunto de outros arquitetos e pensadores dos últimos 70 anos, dos quais se destaca Constant, o artista arquiteto que, entre 1956 e 74, desenvolveu New Babylon. Nesta obra, composta por maquetes, desenhos, pinturas, collages, instalações, etc., ele prevê estruturas de vida, arquitetónicas, espaciais, para um momento do mundo, onde em vez de nos extinguirmos, entregamos à tecnologia a missão de produzir. Os humanos ficam assim disponíveis para uma «vida social total», onde apenas interagimos uns com os outros, a brincar e a desenvolver o nosso potencial criativo, em espaços planeados e totalmente interconectados para esse efeito. Nas palavras de Bruno Latour e Albena Yaneva: «Give Me a Gun and I Will Make All Buildings Move.» Uma ideia que não sendo nova, se prolonga no nosso imaginário, e retorna cada vez mais forte, ancorada numa perceção multidimensional do mundo, e de um mundo em alteração climática e desesperadamente necessitado de soluções sociais para uma vida justa. Uma ideia que parece caminhar para uma progressiva desmaterialização dos espaços. Em vez de paredes, surgem ligações, fluidezes adaptadas ao uso, incorporando na ideia de espaço a dimensão dinâmica do tempo e todas as variáveis que surgem da previsibilidade, mas também da imprevisibilidade do seu uso, por humanos, embora transcenda na sua génese, o antropocentrismo. Nesta arquitetura de extinção, parece existir também esta arquitetura da franqueza ou, finalmente, a inevitabilidade de se assumir um espaço que não disfarça a relação entre natureza, vida social, ambiente e… mercado. Uma arquitetura que nos possa salvar aqui mesmo no planeta Terra. Pois, como advertia Constant no seu manifesto, «Another City for Another Life»: «We demand adventure. Not finding it on earth, some want to seek it on the moon.»
-Sobre o Pedro Pires-
É CCO/CEO da Solid Dogma. O que quer dizer que é criativo, mas que também tem outro tipo de responsabilidades enquanto não aparecem outras pessoas que façam melhor o serviço. É o autor da crónica «Observação de baleias» na Revista Gerador.