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Os Futuros perdidos no Atlântico e a necessidade de reverter o Eco-apartheid

Carolina Almeida, bióloga e designer, parte do seu interesse por temáticas emergentes como o conhecimento ecológico tradicional, o pós-humanismo e os futuros não eurocêntricos, para nos trazer um ensaio onde explora formas alternativas de conhecer o mundo.

Texto de Gerador

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Comecemos onde estamos: Antropoceno. Cientistas, entre geólogos e geógrafos, ainda não concordam numa data de início para a nossa Era. Mas a discussão continua e há quem argumente que o início do capitalismo e a colonização europeia vão ao encontro dos critérios científicos para o início do Antropoceno. Nos navios onde se transportavam pessoas escravizadas também se transportavam diferentes espécies de animais, plantas e pestes iniciando um processo de homogeneização. A denominação da Era como Antropoceno cria dissociação e desresponsabilização, - “Antro” é a natureza humana, é imutável - em vez de se dizer que esta é a Era do Capitaloceno, uma construção humana passível de ser desconstruída. Uma Era que se especializou em sistemas de extração, na exploração da vida, algo tecido a partir do feudalismo, da separação natureza-humano e da escravidão. A mensagem subliminar nestas interações e processos é: "a promessa de riqueza através da conquista". O capitalismo é uma manifestação desse sistema de crenças, penetrando na teia da Vida de maneiras violentas.

O pensamento colonialista é sistemático e permeia a sociedade e a cultura, sendo que as suas raízes remontam a sistemas de extração que existem há mais de meio milénio e que esgotam uns para incrementar o valor de outros. Um sistema parasita baseado em trocas altamente desequilibradas, onde um lado é despojado, para que o outro possa transbordar com recursos, para o seu próprio interesse e lucro. Se falamos de colonialismo, é imperativo que falemos de capitalismo. O negócio de pessoas escravizadas e a sua globalização catalisou a exploração da Natureza e de vidas humanas, uma vez que a globalização de um novo sistema económico tem início com o fluxo e trocas comerciais que advieram com a exploração do “Novo Mundo”. 

A nossa realidade é complexa e não-linear, gerando sistemas resilientes. No entanto, a sede de sustentar o crescimento através de um pensamento linear e capitalista, sem consideração pelo mundo interconectado, destrói os nossos sistemas naturais e desvaloriza os conhecimentos locais e tradicionais. A História que temos vindo a contar omite o profundo e rico conhecimento dos povos nativos de países colonizados e das vítimas de crimes coloniais. A riqueza em recursos naturais do Sul Global tornou-se uma desculpa e uma porta de entrada para a expansão e justificação colonial. Os colonizadores dependiam do conhecimento e do trabalho dos povos nativos para colonizar com sucesso as suas terras ao mesmo tempo negando o seu valor intrínseco e humano, por não irem ao encontro da sua visão euro-homogeneizada do Futuro. Assim, a partilha (forçada), apropriação e roubo de conhecimentos locais permitiu que as expedições europeias fossem bem-sucedidas. Este padrão de destruição de ecossistemas e comunidades em nome do crescimento e progresso está relacionado com o conceito de imperialismo ecológico, algo que ainda hoje persiste, perpetuando a dissociação entre humanos e natureza, a que Vandana Shiva chama de eco-apartheid:

Somos um fio na teia da vida. Os seres humanos têm sido separados da natureza através do que eu descrevo como eco-apartheid. Apartheid significa separação na língua Afrikaans. Eco-apartheid é a crença de que os seres humanos estão separados da natureza, agindo como seus conquistadores, mestres, proprietários. Essa separação é um dos principais impulsionadores da extinção e da perda de biodiversidade.

A colonização da imaginação tem sido um dos maiores obstáculos para documentar e adquirir conhecimento sobre as histórias e perspectivas dos povos colonizados. Por exemplo, Kianda é uma criatura mitológica angolana das águas. Esta criatura nunca foi descrita ou vista pelo povo nativo como uma mulher metade peixe, como acontece com os mitos das sereias gregas. No entanto, após a colonização de Angola pelos portugueses, Kianda é muitas vezes vista como uma sereia. Este fenómeno ocorre constantemente em diferentes culturas colonizadas. Recentemente, tenho refletido como as raízes do colonialismo afetam a Imaginação de Futuros. Quem tem o privilégio de contar histórias, imaginar e criar Futuros? Acredito que tudo se deve aos mitos e histórias que contamos, estas moldam a sociedade desde que um número suficiente de pessoas acreditem nelas. Sem querer influenciar partilho esta minha perspectiva. Existe um exemplo forte para esta permissa, fazendo das palavras de Yuval Noah as minhas: "Dinheiro é a história de maior sucesso já inventada e contada pelos humanos, porque é a única história em que todos acreditamos. Nem todos acreditam em Deus, direitos humanos ou nacionalismo, mas todos acreditam em dinheiro, no dólar.”

Não tenho uma conclusão final e concisa, não sou especialista nem tento ser, não falo de ciências exatas e não gosto de pontos finais. Mas aquilo que tento fazer neste ensaio é partilhar conhecimentos, aquilo que tenho lido e aprendido nos últimos meses sobre o nosso papel na teia da Vida. Os Futuros perdidos no Atlântico no séc.XVI não só estavam cientes disso como o viviam. Porém, as histórias, mitos e conhecimentos e a forma como imaginavam Futuros não eram vistos como dignos. Hoje, sabemos que foram os conhecimentos dessas pessoas que tanto contribuíram para o enriquecimento de várias áreas, da Medicina à Ciência Natural. Mais do que nunca é importante estar aberto a novas formas de conhecer o mundo e às outras formas de falar sobre este, ver e imaginar além das estruturas convencionais e eurocêntricas.

- Sobre a Carolina Almeida -

Curiosa, observadora e multidisciplinar. Carolina Almeida é bióloga de formação e (por acaso) designer, com um interesse crescente em temas relacionados com a descolonização do conhecimento e imaginação. É na interseção de temas emergentes como conhecimento ecológico tradicional, criatividade aumentada, interspecies design, pós-humanismo e futuros não eurocêntricos que tenta explorar formas alternativas de conhecer o mundo. De tempos em tempos, através da escrita, entre outras intervenções, entrelaça novas esferas de conhecimento e diferentes comunidades. 

Fontes: 

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