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Outra Parte: Da imparcialidade

Na Outra Parte deste mês, Raquel Pedro fala-nos sobre a crítica pós-colonial à objetividade na construção do conhecimento científico, questionando a imparcialidade e destacando a importância de reconhecer as perspetivas e agendas presentes na produção de conhecimento, assim como a necessidade de ouvir e incluir vozes diversas.

Texto de Redação

Ilustração de Raquel Pedro

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Desde que a perspetiva positivista foi difundida no seio da construção de conhecimento científico que a objetividade atingiu um estatuto inabalável – qualidade imprescindível de qualquer trabalho científico e investigador. Tanto o trabalho como o investigador (sujeito que pesquisa) deverá, à luz da exigência da atual ciência, ser sempre imparcial. Ainda assim, cada vez mais disciplinas têm refutado a possibilidade inequívoca de estudos e investigações científicas serem objetivos. Aproximei-me da área de estudos interdisciplinares do pós-colonialismo através do estudo da literatura e das contribuições para um pensamento crítico acerca do nosso passado colonial tendo em consideração as nossas vivências e aprendizagens (Pepetela, Mia Couto, Paulina Chiziane, Conceição Evaristo, Buchi Emecheta são apenas alguns nomes de romancistas passíveis de serem lidos para compreendermos questões históricas e sociais, além de fruirmos esteticamente das suas obras). Nesta crónica procuro refletir sobre esta crítica pós-colonial ao pedestal em que a objetividade foi colocada.

Quando visitamos a página online do dicionário Priberam, na definição da palavra imparcial encontramos alguns dos tópicos que procuramos desconstruir. “Imparcial” aparece como “aquele que não tem partido” ou quem é “justo” ou ainda quem “julga como deve ser julgado entre interesses que se opõem”. Que humanos não terão partido? Partido pode aqui ser entendido num termo lato – quem não tem as suas próprias posições subjetivas acerca das situações e de o mundo que o rodeia? Mais ou menos fundamentadas, com um grau de investimento e estudo de maior ou menor grau, todos temos as nossas ideias desenvolvidas ao ponto de nos posicionarmos em muitas situações. Muitas vezes, o mito da meritocracia fez-nos acreditar que quem chega aos lugares de poder e decisão é quem sabe, é quem merece, porque estudo e porque trabalho. No entanto, e por muito que a ideia de que uma sociedade justa é aquela onde quem trabalha e se empenha tem mais sucesso seja uma ideia passível de ser defendida, ela não existe atualmente: não vemos as pessoas que trabalham e se empenham mais a serem reconhecidas pelos seus esforços na grande maioria dos casos – o lugar do mundo em que nasceu, a família que o criou e as oportunidades na vida têm-se mostrado muito mais determinantes na maioria dos casos ao invés do trabalho e empenho das próprias pessoas. Por sua vez, temos a associação do imparcial ao justo, portanto o que deverá ser seguido. Podemos afirmar que foram, historicamente, os homens brancos, europeus e de classe alta que conseguiram chegar a mais lugares de poder e tomada de decisões – estão associados “aos melhores” nas grandes áreas do saber e da vida (como cientistas e pintores). Como aponta o sociólogo Porto Riquense Ramón Grosfoguel, as mulheres foram excluídas do lugar de produção de conhecimento (tal como outros grupos minoritários) e os homens brancos foram mantidos no lugar de neutralidade associado à eficiência da produção do conhecimento. Assim, e como explicam também os estudos pós-humanistas, sobretudo o investigador Pramod K. Nayar, grupos como mulheres, negros e judeus têm sido categorizados fora da própria categoria de humano, tendo sido considerados variações do homem branco. Assim, com o avançar da crítica pós-colonial ao estatuto da objetividade aquilo a que desde a ciência positivista se veio a chamar de neutro passou a ter “um corpo e um rosto” o do homem branco de classe alta. Este processo de desneutralização do homem branco veio não só reconhecer as dinâmicas de poder que estavam por detrás da produção de conhecimento como identificar o processo de outrificação, ao qual as mulheres, as pessoas racializadas e outras minorias foram sujeitas. Acerca deste processo dediquei um capítulo da minha tese final da licenciatura em literatura comparada, à qual chamei Ponciá Vicência, Myra e Mariamar: as personagens que nos contam o outro lado da história.

O combate ao pedestal onde a objetividade foi inserido é imprescindível para conseguirmos melhorar as metodologias através das quais produzimos conhecimento nos dias de hoje, bem como a forma como vemos a restante sociedade. É essencial reconhecermos que absolutamente tudo nas nossas sociedades tem uma perspetiva. Ou seja, a própria imparcialidade vem camuflar uma agenda que precisa de ser reconhecida e estar ao alcance de todos. Sermos objetivos tem vindo a ser confundido com não revelarmos as nossas agendas pessoais e imprescindivelmente políticas, camuflando a nossa própria perspetiva. Ao ser natural não reconhecermos a nossa posição social e crenças torna-se difícil perceber-se as nossas influências e até aquilo que precisamos de desconstruir para podermos posicionar-nos melhor e, no limite, tomarmos melhores “decisões imparciais”. Assim, estamos até a falar sobre o nosso lugar de fala – termo difundido pela ativista negra e escritora brasileira Djamila Ribeiro. Atualmente, é bastante utilizado para impedir determinadas pessoas de falar sobre determinados temas e distanciando-se do seu verdadeiro objetivo: incentivar cada um de nós a identificar a perspetiva a partir da qual estamos a falar e sob a qual nos posicionamos.

Finalmente, gostaria de reforçar a importância de ouvirmos outras vozes sobre produção de conhecimento e não só. A ciência das mulheres curdas, Jineologî apontou não só a referida posição enquanto produtor de conhecimento do homem branco como a subjugação da mulher a um objeto passivo de investigação. As suas reflexões têm ido até na direção de construir a relação vertical entre quem estuda e quem é estudado ou o que estuda e o que é estudado para se caminhar para uma relação mais igual e horizontal. Afinal e, apenas como um mero exemplo, porque não escutamos as mulheres quando estamos a estudar o seu próprio corpo? Esta relação veio também por ter tido a oportunidade de visualizar La lengua de las montñas da realizadora Lisa Çalan, produzida pela comuna de cinema de Rojava. Assisti ao filme no âmbito do Festival internacional de cinema de Marvão e Valência de Alcântara, o Periferias e pude constatar, mais uma vez, a importância de consumirmos produtos que nos mostram uma visão “de dentro” da comunidade e como contrasta com outros filmes que já vi sobre o tema, sempre realizados por europeus.

-Sobre a Raquel Pedro-

Raquel nasceu e cresceu numa aldeia, onde firmou a sua relação com a natureza e os animais. Tocou percussão numa banda filarmónica e passou por inúmeras atividades extra-curriculares. Aos 15 anos começou a estudar artes na Escola Artística António Arroio, onde se especializou em Realização Plástica do Espetáculo e aos 21 concluiu a Licenciatura em Estudos Comparatistas - Arte e Literatura Comparada, oferecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve trabalhos de ilustração e aprofunda a investigação e escrita de artigos nas áreas da literatura e arte, a partir de uma perspetiva feminista e pós-colonial.

Texto de Raquel Pedro
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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