Já chegámos ao fim de mais um mês de recomeços, Setembro. Os inícios das aulas são marcos importantes numa grande parte da vida de algumas pessoas. É também uma altura de novas movimentações, uma altura em que vemos as ruas, praças e parques das nossas principais cidades a serem ocupadas por “caloiros” e “veteranos” naquelas ditas tradições da “praxe”, descritas pelos que a praticam como rituais de acolhimento aos novos estudantes, aqueles que entram para o primeiro ano da licenciatura.
Enquanto estudante, estes rituais nunca me atraíram. O primeiro grande contacto que tive foi quando entrei para a Escola Artística António Arroio e soube que, apesar de ser uma escola secundária, ocorriam as ditas “praxes” durante uma tarde específica, que consistia no atirar de tintas e misturas de produtos alimentares para cima dos caloiros ajoelhados na Alameda, como retrata este vídeo. Poucos anos depois, saíram várias notícias, cujo paradeiro já perdi, onde referiam como nesse ano, um polvo teria sido esfregado na cara de vários alunos. Tudo isto me parece desde logo bastante estranho, e de maneira nenhuma uma forma de acolher alguém. Fui percebendo que “as praxes”, tal como esta, incluíam rituais humilhantes para os novos estudantes e alimentam nos mais velhos – ditos veteranos – a sede de dominação que tantas vezes uma sociedade de classes, patriarcal e neo-colonial fomenta. Fui percebendo como a praxe é uma “pequena escola” para um mundo competitivo e desigual maior, e como tantos estudantes participam, alimentam e assimilam tais valores.
Tive a sorte de estudar grande parte da licenciatura numa faculdade onde as práticas da praxe não têm grande expressão, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Não quer dizer que não exista, mas não fui diariamente confrontada com o facto de participar ou não da praxe, como o são os estudantes da Universidade de Coimbra, onde estudei durante um semestre. Nesta cidade estudantil, os rituais de que falo “perseguem” cada estudante de primeiro ano, e enquadram-se numa estrutura maior, que não acontece num dia isolado, mas sim periodicamente, desde que se começa até que se acaba a licenciatura, passando por várias fases. A frequência “optativa” de tais pode diluir-se nos grupos de trajados – ou “morcegos” ou “harry potters”, este segundo o qual eu continuo a achar um tremendo elogio – que encontrámos à entrada das faculdades, nas esperas à porta das aulas de primeiro ano, nas abébias e dispensas das aulas, nas exclusões dos grupos em que são partilhados apontamentos e outras informações. Nas ruas, são normalizados os cânticos misóginos, os berros autoritários e as posições em que os caloiros são colocados pelas praças e parques – tudo manifestações que causam uma enorme indignação à grande maioria dos estudantes erasmus, que frequentando as repúblicas, acabam sempre a perguntar – que coisa horrível é essa que acontece nas ruas? – As repúblicas, enquanto casas comunitárias, mantêm-se formalmente anti-praxe até hoje, e ativamente ainda uma boa parte das casas, desde a crise académica de 69, onde toda a Associação Académica acabou por se decretar anti-praxe, durante uma assembleia magna, decisão mais tarde revogada por esta estrutura mas nunca pela conselho de repúblicas. A tal episódio, José Mário Branco faz menção nesta entrevista, onde também manifesta a sua revolta pelos estudantes que voltaram a praticar a praxe, há tantos anos reconhecida como problemática e perpetuadora de ideias fascizóides. Sobre os cantos misóginos, exemplifico “Os de civil são todos danados para mamar / Prá paneleirage, ninguém os pode parar / Têm muitas gajas pa levar / Mas os informáticos é que as têm de montar / Com muita força! Com muita força ninguém nos há-de parar! / Com muita força! Com muita força! / Com muita força nós vos iremos encabar!”
Além do mais, podemos atentar no código da praxe da Universidade de Coimbra, um documento que explicita uma série de regras, incluindo as que regem a relação hierárquica e desigual entre faculdades e estudantes, artigos 13 e 14. Dos tópicos mais abusivos que podemos encontrar, cito: “Aos caloiros estrangeiros, é vedada a permanência na via pública após a meia-noite (zero horas) até à hora do primeiro toque matutino da Cabra” (Título V, artigo 24º), cujas sanções poderão ser aplicados por trupes. Finalmente, nos últimos anos tivemos inúmeros escândalos relacionados com estas tradições académicas, sejam festas onde mulheres podem trocar “favores de cariz sexual” por bebidas, o carro dos alunos de história que aludiu ao holocausto e vestiu caloiros de judeus e veteranos de nazis, os milhares de carrinhos atirados ao rio Mondego no cortejo da queima das fitas e, no limite, as mortes ao longo da história e as do Meco (às quais sobreviveu o “veterano” já que não estaria envolto na areia no momento da chegada da onda).
Por todas as questões apresentadas, que embora não se esgotem, podem bem ilustrar a minha posição, acredito que as práticas da praxe devem ser abolidas e substituídas por outras formas de integração não hierárquicas. Desde 2014 que as repúblicas organizam o Cria’ctividade, coletivo de base e não hierárquico, que proporciona festas, conversas, tardes de jogos, jantares comunitários e outros aos novos estudantes, não lhes vetando a participação na dinamização de tais atividades e tão pouco a frequência em simultâneo da praxe. Também em Lisboa vimos várias @lternativas surgirem, bem como o Acolhimento Artístico na Escola Artística António Arroio.
-Sobre a Raquel Pedro-
Raquel nasceu e cresceu numa aldeia, onde firmou a sua relação com a natureza e os animais. Tocou percussão numa banda filarmónica e passou por inúmeras atividades extra-curriculares. Aos 15 anos começou a estudar artes na Escola Artística António Arroio, onde se especializou em Realização Plástica do Espetáculo e aos 21 concluiu a Licenciatura em Estudos Comparatistas - Arte e Literatura Comparada, oferecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve trabalhos de ilustração e aprofunda a investigação e escrita de artigos nas áreas da literatura e arte, a partir de uma perspetiva feminista e pós-colonial.