A Outra parte chega ao fim depois de dois anos a escrever sobre urgências, as minhas urgências mas sobretudo, as que acredito serem preocupações que devemos ter perante o mundo que nos rodeia. Espero ter conseguido mostrar a outra parte de debates fulcrais para as nossas sociedades e que normalmente não têm visibilidade pública. Gostaria de terminar falando-vos de “dois assuntos do momento” que, mesmo parecendo distantes, se encontram no objetivo comum de ocupar o espaço que lhes pertence.
O primeiro está a acontecer em Portugal: uma gentrificação absurda que escala o mercado habitacional e se agrava com o abismo cada vez mais marcado entre a capacidade económica da população e o custo de vida. As nossas cidades estão cada vez mais viradas para o turismo, como se de facto devessem servir a quem as visita e não a quem as habita. Além disso, se deixarmos de poder habitar as cidades – o que vêem os turistas visitar? que cultura vão conhecer? – estamos cada vez mais reféns de um crescimento insustentável cujo retorno que têm trazido para a população é uma qualidade de vida reduzida, em territórios periféricos que nascem para alimentar “a cidade” servindo como seus dormitórios – cidades que não vivem sem trabalho precário, na maior parte das vezes imigrante. Por isso se fez a manifestação nacional do passado Domingo. Além disto, continuamos a ouvir argumentos como a “escassez” ou urgência económica da guerra, que deslocam a atenção do verdadeiro problema: a distribuição dos bens no sistema económico capitalista. As casas que existem em Portugal, efetivamente, são em número suficiente para todos e todas, como demonstraram as últimas estatísticas do INE. Já dizia José Mário Branco na sua célebre canção FMI que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar! – Ora, continuamos a ouvir crítica às ocupações habitacionais, como se fosse “inevitável existirem edifícios devolutos”, mesmo quando alertam para a situação escandalosa que se vive: “pessoas sem casa e casas sem pessoas”. Um exemplo, que me é próximo como estudante-trabalhadora, a Universidade de Coimbra, cujas várias instâncias (reitoria, serviços de acção social - SASUC etc.) possuem dezenas de edifícios, muitos dos quais devolutos, está atualmente a levar a cabo um processo legal contra um conjunto de estudantes que na marcha do 25 de Abril, ocupou durante algumas horas o edifício onde funcionavam os antigos serviços médicos dos SASUC, como forma de alerta para a hipocrisia que é possuírem tantas propriedades e não as disponibilizarem para habitação estudantil. Não posso deixar de referir a vergonha que sinto enquanto contribuinte e estudante da UC face às escolhas dos seus dirijentes no emprego do dinheiro público que lhes cabe gerir.
Em segundo lugar deixo também algumas palavras sobre a questão da Palestina, um assunto de extrema importância e sobre o qual, infelizmente, acabei por não dedicar nenhuma crónica exclusiva. Os discursos dos meios de comunicação Ocidentais têm sido como sempre favoráveis ao Estado de Israel, contundentes com aquela que foi a decisão durante o desfecho da II Guerra Mundial, a atribuição de um “país” a “um povo que não o tinha”, ignorando que o território já era legitimamente habitado – mais uma vez, contribuímos para um conflito que no terreno, se dá fora das nossas fronteiras sob a batuta de “salvadores”, continuando a desresponsabilizar-nos ainda que com uma pitada de culpa cristã. Mesmo depois de todos os ataques do estado israelista à Palestina em 2023, muito bem descritos neste artigo da Guilhotina.info, continuamos a encontrar notícias que se posicionam inequivocamente a favor deste estado. É possível que não vejamos mais posicionamentos a favor da Palestina porque isso seria o reconhecimento oficial do falhanço da decisão de atribuir o Estado de Israel ao povo judaico como recompensa pelas atrocidades sofridas ao longo da II Guerra Mundial e de “não terem um estado”. Ora, o problema do genocídio nazi não foi, propriamente, o povo judaico não ter um estado (houve outros genocídios, mesmo que em menor escala, contra os ciganos, contra homosexuais e outros grupos minoritários e nunca ponderámos atribuir-lhes um Estado, certo?). Os projetos eugenistas continuam a existir e têm escalado cada vez mais, ancorados no discurso da extrema direita que se faz alimentar dos problemas existentes e que a restante sociedade parece empurrar para debaixo do tapete. Por exemplo, a população cigana, um outro povo que se diz “não ter país” é uma grande percentagem da população portuguesa residente no Alentejo e, em alguns locais, vive em condições miseráveis, com um ponto de água para várias dezenas de pessoas. Ora, em 2016, o título da notícia que o Público lançou sobre esta questão foi “comunidade cigana de Beja constrói barracas para ter acesso ao RSI”. Felizmente, hoje em dia, este Jornal já atualizou o seu discurso sobre o assunto, lançando uma importante reportagem sobre a história da resistência dos portugueses ciganos, que conta com quinhentos anos e muitas perseguições. Isto para dizer que, pelo menos, o paradigma nas ciências sociais já superou a segregação como forma de organização política privilegiando como fator de riqueza a mistura e o convívio das diferenças dos povos. Quanto a soluções políticas mais prósperas existem várias, mas parece-me importante falar do confederalismo democrático, escrito pelo escritor curdo Abdullah Ocalan, por qual se rege a federação do Norte da Síria, que propõe que as sociedades se organizem por instâncias de baixo para cima e não através de um estado centralizado, até a propósito dos ataques que vem a sofrer este povo em Rojava, à mão dos bombardeamentos Turcos, declaradamente contra infraestrutura civil desde o dia 4 deste mês.
Devemos perceber as lutas pela igualdade e liberdade como internacionais, pois é importante conhecer aquilo que temos em comum com os povos que resistem do outro lado do planeta que me parece muito mais do que com quem continua a reprimir as nossas vontades mais revolucionárias em Portugal. Cabe-nos a construção de um mundo melhor que está para além da “nossa parte”, a célebre frase que nos tem impedido de resistir e lutar coletivamente – quando afirmamos eu faço a minha parte supomos que o que temos de fazer é individual, que contra um sistema articulado para nos explorar e dominar, não importa a nossa articulação, ou seja, que cada um vai fazer a sua parte individualmente, por oposição à construção coletiva de que necessitamos, de trabalho integral em conjunto. É também por isto que queremos a Outra parte.
-Sobre a Raquel Pedro-
Raquel nasceu e cresceu numa aldeia, onde firmou a sua relação com a natureza e os animais. Tocou percussão numa banda filarmónica e passou por inúmeras atividades extra-curriculares. Aos 15 anos começou a estudar artes na Escola Artística António Arroio, onde se especializou em Realização Plástica do Espetáculo e aos 21 concluiu a Licenciatura em Estudos Comparatistas - Arte e Literatura Comparada, oferecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve trabalhos de ilustração e aprofunda a investigação e escrita de artigos nas áreas da literatura e arte, a partir de uma perspetiva feminista e pós-colonial.