Chegou-nos um Verão com força. Para muitos, o primeiro que podemos disfrutar depois de termos sido assolados dois anos pela pandemia. Agora, quase já não falamos dela. Para outros, um calor insuportável deserta as ruas, impede ou apressa as férias. Os incêndios entram literal ou metaforicamente pelas nossas casas dentro e provam mais uma vez como as alterações climáticas serão também, em grande medida, uma questão de classe, ou não fosse a população mais empobrecida e interiorizada a mais afetada. Os privilégios também se vêem naqueles que podem sair das cidades no Verão, rumando a férias frescas e longe da poluição ou por oposição, dos que permanecem em suas casas em lutas contra as chamas, praticamente tão abandonados como no resto do ano.
Com o Verão chegam festivais, férias, reencontros e despedidas. É a altura em que regressam tantos migrantes, tal qual bem dito Meu querido mês de Agosto mas também o momento em que tantos outros partem para a dita imigração sazonal. São os meses do turismo e da “época alta” onde é praticamente impossível reconhecer algumas partes das nossas cidades, como de resto têm sido quase todo o ano com a gentrificação a afetar Lisboa, Porto e Coimbra, seguidamente, tornando a capital numa das cidades mais caras para se viver. Estes meses de calor têm muitas ramificações, mas escolhi falar um pouco sobre uma das que, pelo menos para mim e por este ano já passou, a dos festivais de música.
Geralmente no final de Julho, faço a mala e rumo ao Músicas do Mundo, para as primeiras três noites em Porto Covo e restantes em Sines. A sede dos dias de diversão, praia e concertos aguçou-se nos dois anos em que vivemos a pandemia, chegámos a pensar que nunca mais teríamos algumas sensações de volta – e em certa medida é verdade, já que não as percecionamos da mesma maneira. Este ano não me foi possível permanecer o tempo todo, ainda assim, não deixo de escrever algumas considerações. Não deixo de pensar nos contextos, no público, na cidade, na população local, nos trabalhadores e trabalhadoras.
Sabemos que estamos perante um festival de muitas contradições. Porque interessa à GALP financiar este festival? Porque interessa a um público "mais alternativo, crítico e consciente" deslocar-se a estes locais? As mensagens dos artistas são belíssimas, no castelo ao início da tarde e durante o concerto gratuito de Bia Ferreira ouvimos falar de assuntos sensíveis e importantes - ouvimos falar de racismo, xenofobia, patriarcado, classe, quotas e até gritamos como solução "o coletivo" - aquilo que podemos ter, entre nós. Contudo, eu pergunto-me, quem o tem? Será que realmente construímos coletivos fora daquele espaço? Pergunto-me onde estamos depois do festival, que comunidades criamos, que projetos apoiamos, onde militamos. Sobre Sines pergunto-me ainda, como está a comunidade envolvida? Que relação existe para além das bancas temporárias da venda de comes e bebes? Como deixamos a cidade no fim? E finalmente, o que sabemos sobre o projeto da GALP em Sines, uma das maiores refinarias da Europa?
A organização têm-se tornado cada vez mais indispensável, face a tantos projetos que têm sido colocados em cima da mesa e que ameaçam as nossas sociedades. O extrativismo, como um dos maiores problemas ambientais é, tal como as alterações climáticas, um dos grandes males a combater. A ideia de crescimento e exploração são ideais intrínsecos de uma economia capitalista e não nos podemos calar nem esquecê-los. O Verão da descontração e dos serões também precisa de ser o Verão das lutas por um mundo melhor, sobretudo com os incêndios ou os grandes projetos pela extração de lítio a alertar-nos. Que não sejamos convencidos por produtos "alternativos" organizados na mesma base de exploração do território e da população que "os comerciais" ao invés das nossas construções de base, comunitárias e autónomas.
-Sobre a Raquel Pedro-
Raquel nasceu e cresceu numa aldeia, onde firmou a sua relação com a natureza e os animais. Tocou percussão numa banda filarmónica e passou por inúmeras atividades extra-curriculares. Aos 15 anos começou a estudar artes na Escola Artística António Arroio, onde se especializou em Realização Plástica do Espetáculo e aos 21 concluiu a Licenciatura em Estudos Comparatistas - Arte e Literatura Comparada, oferecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve trabalhos de ilustração e aprofunda a investigação e escrita de artigos nas áreas da literatura e arte, a partir de uma perspetiva feminista e pós-colonial.