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Perante uma mão beijada uma democracia diminuída

A Carta do Leitor de hoje chega-nos pelas mãos de Leonardo Camargo Ferreira, que fala-nos sobre a relação entre as religiões e o Estado.

Uma das grandes conquistas que, na conjuntura francesa dos séculos XVII e XVIII, o Iluminismo e a Revolução Francesa nos trouxeram, e foi também defendida a partir da ideologia republicana no início do século XX em Portugal, encontra-se na separação do Estado em relação à Igreja, através da adoção de uma visão laica do poder político. No fundo, ante uma história que tinha sido governada pela influência que a religião possuía na construção dos valores coletivos, mantendo-os conservadoramente afastados de qualquer tipo de inovação social, biológica ou mesmo sexual, e no exercício da política, tornara-se necessário, pelos resultados de sofrimento e de parco desenvolvimento das nações, repensar e terminar esta simbiose entre o divino e os poderes públicos. Os direitos sociais e civis a uma educação inclusiva, a tratamentos de saúde especializados ou à liberdade de estabelecer uma relação com quem se ama advêm da maior abertura que os Estados manifestaram com o avançar do tempo, passando os governantes a serem capazes de pensar pelas suas próprias ideias e negociando o que é melhor para a sua população.

Assim sendo, qualquer órgão que represente os eleitores de um dado país deve ter em conta que, se este mesmo país se qualifica como laico, a religião deixa de apresentar a sua prerrogativa na definição dos destinos nacionais e passa a ser apenas uma de muitas esferas sociais nas quais são desenvolvidas práticas e ritos. Contudo, se tal pode parecer óbvio aos olhos dos cidadãos comuns, não se revela do mesmo modo para a atual Presidência da República Portuguesa. O Exmo. Sr. Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, pela sua devoção inamovível aos preceitos do Catolicismo, tende a olvidar que os seus sentimentos e pensamentos individuais não podem imiscuir-se nas suas obrigações enquanto garante do funcionamento da nossa democracia.

Já o vimos a defender o indefensável quando referiu que o número de casos de abusos de menores na Igreja Católica não era propriamente elevado, branqueando a injúria do ato através da aparente escassa cifra de vezes que foi cometido; também já assistimos, mais do que por uma vez, ao gesto de dar um beijo na mão do Papa Francisco, num claro sinal de submissão da sua autoridade política em presença do que considera ser uma pessoa plena de sacralidade. Agora, a propósito das Jornadas Mundiais da Juventude, questionou Carlos Moedas, líder da Câmara de Lisboa, sobre o custo financeiro do “altar” que irá ser preparado para receber o mencionado papa, ficando imediatamente a seguir satisfeito com as explicações do chefe autárquico como não ficou, por exemplo, relativamente a outras decisões de ministros do atual governo socialista. Este tipo de sujeições à dinâmica da vida religiosa, sobretudo a um determinado tipo de religião e a uma igreja em particular, evidencia-nos as dificuldades enfrentadas por Marcelo em conseguir distanciar as suas mundivisões acerca do divino da gestão de um país que merece uma primeira figura de Estado isenta de qualquer tipo de enviesamentos comprometedores da própria lógica do regime democrático e do ethos das novas gerações de portugueses, mais voltadas para as causas sociais e menos para o sagrado e o que este nos pretende incutir.

Marcelo Rebelo de Sousa também ainda não se pronunciou quanto às palavras do Papa Francisco em relação à temática da homossexualidade. No momento em que Francisco afirma, na sua entrevista, que ser-se homossexual não é um crime, porém um pecado, está a produzir uma visão facilmente contestada por dois argumentos: em primeiro lugar, o amor verdadeiro não opta por discriminar determinadas condições sociais, antes pelo contrário, incluindo-as na sua casa, algo que o Santo Padre deveria reconhecer no carinho da personalidade de Jesus; por outro lado, se a Igreja considera pecados como “crimes” que atentam contra a vontade de Deus porque é que ser-se homossexual não merece ser punido pela lei da mesma forma como roubar ou matar? Trata-se de um discurso sem grande lógica, mas igualmente muito redutor, incapaz de ver para além dos dogmas instaurados por seres humanos de milénios atrás e de se adaptar às mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas em Portugal e no mundo. Contudo, o Presidente Marcelo não contestou publicamente esta afirmação, deixando de recorrer à sua voz amiúde presente nos comentários a assuntos sem tão grande importância. 

A ausência de uma reprovação política ao que foi proferido pelo Papa constituirá uma vergonha nacional para quem nos governa na primeira linha. A laicidade de um Estado deve ser promovida em toda a representação política, incluindo a presidencial, e para lá das convicções pessoais. Defender a Igreja Católica em detrimento dos valores democráticos que enformam a nossa vida em comunidade, inclusive quando essa mesma religião proclama que o amor de uns é pecado e o de outros merece ser promovido, constitui uma desvalorização da luta pela igualdade que travámos até aos dias de hoje. Por isso, enquanto pessoa gay, exijo que o meu Estado não me ignore face aos poderes da igreja e, sim, que me represente por convictamente acreditar nos direitos sociais e no valor da humanidade de todos os sujeitos.

O papel da religião deveria ser o da união em torno da fé para aqueles que estimulam a crença no divino, e não de estigmatização e colocação de uns indivíduos contra os outros. No instante em que isso acontece as figuras políticas – torno a dizer, laicas pela natureza do regime democrático – devem intervir, demonstrando a sua independência, autoridade e respeito pela vida de toda a pessoa. Um Presidente como o Marcelo, perante tantas afirmações discriminatórias e comportamentos que envergonham a sacrossanta instituição, não pode continuar a debruçar-se simbolicamente na presença da mesma. Tal rebaixa o Estado português e remonta-nos a um tempo de perseguição e de morte e de descrença na justiça e na ciência. O Presidente Marcelo necessita de se lembrar que, perante uma mão beijada, uma democracia torna-se diminuída, pelo que as suas opiniões próprias estarão sempre abaixo da tarefa de representação de todos os portugueses. É essa capacidade de proteger a soberania política que tem estado ausente no exercício do mais alto cargo da nação e que precisa de ser recuperada.

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Texto de Leonardo Camargo Ferreira

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