Desde pequena que desenhava animais, pessoas e paisagens e ficava contente com o resultado. Ia acumulando pequenos desenhos, orgulhosamente, como se fossem troféus. Todos os meus diários tinham desenhos a carvão, por entre os longos e infinitos textos carregados de dúvidas existenciais próprios de uma adolescente. Nessa fase, temos a ideia de que a nossa inquietação é única e que mais ninguém a compreenderá, ou que partilhá-la com alguém nos empurrará para um beco desprezível, onde ninguém quer estar. Por essa razão, codificava os meus escritos e fechava-os a sete chaves, ao ponto de não os conseguir descodificar. Todos os adolescentes guardam os seus segredos durante anos e anos até que as cascatas de lágrimas que derramaram sequem definitivamente e sejam substituídas por outras, mais adultas e mais aceitáveis.
A vontade de ser uma artista plástica encaminhou-me para a Escola Artística António Arroio, uma escola de artes libertina para a época, que não sendo tão famosa como a mítica Fame em Nova Iorque, era a escola mais revolucionária da época em Lisboa, principalmente para quem vinha de um liceu como o Rainha D. Leonor, conservador nos modos e no ensino, e que ainda cheirava ao mofo do antigo regime.
Ao mesmo tempo que desejava ser artista plástica, tinha a convicção de que, um dia, seria uma grande pianista. Não me lembro com que idade iniciei as minhas aulas de piano em casa da D. Ema. Sei que terei sido motivada pela minha mãe, que, na sua infância, também tinha aprendido a tocar piano e que frequentemente mostrava como a sua mão direita ainda conseguia recordar-se da «Marcha Turca», que tantas vezes tocou em pequena.
A minha primeira professora chamava-se Ema e semanalmente lá apanhava o autocarro e depois fazia o trajeto a pé até chegar a sua casa. Esse percurso era acompanhado pelo medo de encontrar um velho sabujo, que surgia por detrás de uma árvore a masturbar-se. Nesse tempo, não se partilhava esses abusos em casa, pois não era suposto que uma criança se queixasse e que dissesse que um homem mostrava o pénis de forma indecorosa na via pública. O receio de passar por ali obrigava-me a correr como se não houvesse amanhã, com as partituras às costas, até me sentir segura na casa da professora. Se a mulher que sou hoje já existisse naquela altura, a situação só teria ocorrido uma vez, mas os tempos eram outros.
De qualquer modo, não foi esse velho que me fez desistir do sonho de ser pianista. Fiz exames para o conservatório e não entrei. Mas não fiquei por aí. Um amigo, por quem nutria uma paixoneta de adolescência, disse-me que o seu irmão mais velho era professor de piano na Academia dos Amadores de Música e sugeriu-me que fosse ter com ele ao Hotel Méridien, recém-aberto, onde tocava ao fim da tarde para os turistas. Disse-lhe que iria.
Esse dia foi empolgante, pois tinham-me oferecido na escola um gato bebé que adotei na esperança de convencer os meus pais a aceitá-lo.
Lá fui eu nos meus trajes da época apanhar o metro até ao Marquês de Pombal e subir até ao hotel com o gato ao colo. O hotel era monumental, cheio de vidros e espelhos, parecia algo de outro mundo com toda aquela sofisticação. O porteiro vestido a rigor interpelou-me, querendo saber para onde me dirigia. Conversar com o pianista do hotel, mas antes pretendia a indicação da casa de banho para tentar livrar-me do cheiro a xixi de gato que o meu corpo guardava. Estranhamente deixou-me entrar.
Naquela altura, eu vestia-me de forma particular: um misto de hippie e da personagem interpretada por Maryl Streep no filme A amante do tenente francês, da autoria de Harold Pinter. Saia de godés de serapilheira, por cima de um saiote com rendas brancas, corpete de camurça com fitas de atacador e blusa branca decotada com mangas de balão, costuradas por mim, e, por cima, uma magnífica capa de tecido castanho em godés com capucho, que me chegava às canelas. O apontamento final eram as socas do Minho e as meias de liga de renda branca.
Não consegui ficar com o gato, mas consegui que os meus dedos continuassem a ser ensinados pelo professor Nuno, atualmente um querido amigo, até decidir que o meu caminho seria outro.
As minhas paixões iam para além da música e do desenho e, depois de alguns cursos no IJOVIP [Inserção de Jovens na Vida Profissional] e de uma formação no IFICT [Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral], achei que era através do teatro e da representação que iria realizar-me. Acabei por me profissionalizar com o espetáculo de teatro O Baile, encenado por Hélder Costa, com produção da Barraca, que esteve em exibição durante quase dois anos, no Ritz Club de Lisboa e em tournée pelo país e pelo mundo. Depois disso, tive muitas outras experiências com especial destaque para a criação do grupo de teatro Meia Preta, especializado em commedia dell‘arte e improvisação com quem fiz muitos espetáculos e onde aprendi muito.
Os meus interesses pelas várias expressões artísticas acompanharam-me ao longo da minha vida e, mesmo tendo mudado de rumo e ter encontrado na Psicologia e na Sexologia o palco que me realiza, todas elas continuaram a viver dentro de mim.
É talvez por tudo isto que o meu novo projeto reúne algumas dessas paixões. O MUSEX – Museu Pedagógico do Sexo é uma ideia que comecei a criar em 2010. Em breve, poderão visitar a primeira exposição intitulada: Amor Veneris – Viagem ao Prazer Sexual Feminino, que se pretende pedagógica e artística e que propõe interpelar, questionar, mobilizar e atrair o público para a atualidade deste tema. Esta exposição, que não seria possível sem a minha extraordinária equipa, estará disponível para todas aquelas e aqueles que a queiram visitar, durante seis meses no palácio Anjos em Algés.
Estejam atentas e atentos à data da sua inauguração que, em breve, será divulgada, e saibam que lá estarei de braços abertos para vos receber e para vos conduzir nesta viagem fundamental ao prazer sexual feminino.
-Sobre a Marta Crawford-
É psicóloga, sexóloga e terapeuta familiar. Apresentou programas televisivos como o AB Sexo e 100Tabus. Escreveu crónicas e publicou os livros: Sexo sem Tabus, Viver o Sexo com Prazer e Diário sexual e conjugal de um casal. Criou o MUSEX — Museu Pedagógico do Sexo — e é autora da crónica «Preliminares» na Revista Gerador.