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Psiquiatria lenta, direitos humanos e saúde mental democrática

Na crónica Psiquiatria Lenta desta mês, João G. Pereira fala-nos do conceito de psiquiatria lenta e da urgência da sua implementação.

Texto de Redação

Fotografia da cortesia de João G. Pereira

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O termo “Psiquiatria Lenta” foi inventado pela psiquiatra americana Sandra Steingard no contexto da sua prática no sistema psiquiátrico “Open Dialogue” e inspirada pelo movimento “Slow Food” na Itália dos anos 80, como protesto contra a industrialização do mundo alimentar.

A psiquiatria e a saúde mental no geral são hoje campos grandemente desumanizados, tecnocratas e burocratas, despidos de valores, focados nos “pensos rápidos” e na devolução dos “doentes” para a máquina produtiva do capitalismo. Não existe tempo nem interesse para entender, para compreender as histórias pessoais e conhecer os seus contextos. Importam mais os números, as prevalências, as camas hospitalares, as taxas de emprego ou os subsídios de invalidez.

O século das luzes, o avanço da era científica e o nascimento do asilo psiquiátrico vieram destronar e silenciar a loucura dando lugar à “doença mental”. À primeira vista, esta alteração qualitativa poderá parecer um avanço. Contudo, se “de loucos todos temos um pouco”, doentes só mesmo os que são diagnosticados. Surge, assim, uma separação clara entre “doentes” e “saudáveis”, entre “nós e “eles”, e apenas uma entidade com o poder de separar e distinguir: o médico. Parecem-me existir nesta alteração pelo menos dois problemas: o estigma e a desumanização.

Quanto ao estigma, deixo o exemplo de uma fotografia típica e bem intencionada que acaba por promover o contrário daquilo que defende. Numa exposição dedicada à saúde mental e ao dia 10 de Outubro, suscitou-me particular atenção uma fotografia de autor anónimo com um conjunto de 25 pessoas, 20 das quais vestidas com t-shirt branca e com a cara pintada de branco e 5 com t-shirt preta e cara pintada de preto. Os 20 primeiros posavam com o corpo inclinado para a direita enquanto que os restantes 5, ao centro do grupo, posavam para a esquerda. Na legenda da fotografia podia ler-se o slogan “em Portugal, 1 em cada 5 pessoas sofre de doença psiquiátrica”. Pergunto-me como é possível que uma fotografia com a intenção de incluir, esteja a sinalizar de forma tão clara e fracturante uma diferença? A saúde mental é dimensional, não é categórica. Certamente que algumas das caras brancas teriam partes menos saudáveis e felizes, assim como as caras pretas teriam partes alegres e saudáveis. A fotografia consegue, de facto e sem intenção, criar um estigma: “nós”, as caras brancas, os saudáveis e “eles”, as caras pretas, os doentes. Será que “nós”, as caras brancas, somos assim tão diferentes das “caras pretas”? Não seremos todos um grande grupo, apenas um “nós”, vulneráveis e sujeitos a enlouquecer se as circunstâncias sociais forem suficientemente adversas? Escolho a palavra enlouquecer e não adoecer, porque suscita mais facilmente um efeito ambiental e um determinante social, ao invés da palavra doença, que parece retirar a pessoa do seu meio, tratando a loucura como o resultado de predeterminações biogenéticas.

Quanto à desumanização, esta ocorre no momento em que se começa a considerar a loucura como objecto de estudo científico. As ciências humanas adoptaram em grande parte os mesmos métodos das ciências exactas, ou seja, tentando separar ao máximo o objeto de estudo do investigador, retirando qualquer tipo de influência, ou seja, de humanidade. A aplicação, ao longo dos anos, do método científico à loucura transformou as pessoas e as suas histórias em diagnósticos, planos de intervenção e prognósticos. Felizmente, ao longo da história, foram surgindo humanistas, quase sempre com bons resultados, mas também quase sempre abafados por uma indústria em crescimento exponencial, o triângulo psiquiatria-indústria farmacêutica–seguradoras. O psicólogo Kurt Lewin advertiu para a impossibilidade de separar observador e observado (figura-fundo); R. D. Laing demonstrou como o contexto pode ser “enlouquecedor” e levar à divisão do self; Maxwell Jones sugeriu o envolvimento de todos na tarefa terapêutica, tratando grupos de pacientes e staff como se fossem um único organismo psicológico; Daniel Stern, Jaak Panksepp ou Colwyin Trevarthen desenvolveram as teorias da intersubjetividade, mostrando como genética e ambiente não se podem separar e como as experiências infantis alteram profundamente o mapa cerebral.

Ao longo dos próximos meses irei trazer temas ligados a esta ideia de psiquiatria lenta, do foco na relação, do regresso do bom senso à saúde mental e à saúde no geral. A importância de desburocratizar e de humanizar as profissões basilares de uma sociedade, nomeadamente as que estão ligadas à saúde e à educação. Se eu atirar um copo de vidro ao chão, a não ser que o vidro seja de uma qualidade excepcional, é muito provável que este se parta. A isto chama-se causalidade linear, forma de pensamento com grande influência na nossa cultura. Os seres humanos são seres relacionais, vivem em sociedade, numa intricada rede de relações. Há sempre múltiplos fatores a influenciarem-se mutuamente, numa complexidade a que já Edgar Morin tinha feito referência. Ora, estas relações levam tempo a entender, a confiança leva tempo a estabelecer, o significado demora a compreender, os passos para a resolução podem demorar a ser dados e, normalmente, precisam de múltiplos agentes a acompanhar, de uma rede de suporte. À atenção dada a estes factores se chama Psiquiatria Lenta, preocupada em escutar e em abrir o diálogo, sem pressas para mudar ninguém, sem agendas, sem expectativas, com amor.

Num mundo em profunda aceleração e desumanização, faz falta a psiquiatria lenta, mas também a democracia lenta, o jornalismo lento, a educação lenta e a política lenta. Os seres humanos inventaram a cultura e, nessa criação, descuraram a autopoiese e a auto-organização característica dos seres vivos. Construíram e transmitiram sistemas de causalidade linear, fomentando a competição e até a destruição, ao invés da colaboração e do diálogo.

- Sobre João G. Pereira -

João G. Pereira é psicólogo, doutorado em Psicoterapia pela Middlesex University e psicoterapeuta registado no United Kingdom Council for Psychotherapy. Iniciou a sua vida profissional em Lisboa e Barcelona tendo-se fixado, posteriormente, no Reino Unido, onde viveu e trabalhou durante 10 anos, maioritariamente em departamentos de psiquiatria do sistema nacional de saúde (NHS). A sua desilusão com o sistema psiquiátrico tradicional levou-o a estudar sistemas mais relacionais e humanistas, tendo acabado por juntar-se à Fundação Romão de Sousa e ao seu projecto “Casa de Alba”, que dirige desde 2013. Desenvolveu o sistema de Comunidades Terapêuticas Democráticas em Portugal e esteve na origem do movimento “Open Dialogue” português, inspirado pelas suas visitas à Lapónia Finlandesa, Norte da Noruega e Nova Iorque. Também em Portugal foi Professor Auxiliar Convidado na Universidade de Évora e colaborou em estudos Pos-Doc de Filosofia Psiquiátrica na Universidade Nova. Tem interesse particular no desenvolvimento da relação terapêutica e na intersecção entre a psicanálise relacional, a filosofia e as neurociências afectivas, em particular na área da mentalização, que levou à sua acreditação no British Psychoanalytic Council. É actualmente Presidente da International Network of Democratic Therapeutic Communities, supervisor e professor de psicoterapia no Metanoia Institute em Londres. É autor de vários artigos em jornais científicos, tendo co-autorado e editado os livros “Schizophrenia and Common Sense” da Springer-Nature e “The Neurobiology-Psychotherapy-Pharmacology Intervention Triangle” da Vernon Press.

Texto de João G. Pereira
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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