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Psiquiatria Lenta: Nova lei de Saúde Mental. Os serviços devem adaptar-se às necessidades das pessoas e não o contrário

Na crónica Psiquiatria Lenta deste mês, João G. Pereira, a propósito da nova lei de Saúde Mental, discorre sobre a problemática do internamento psiquiátrico.

Fotografia da cortesia de João G. Pereira

A proposta de lei do Governo sobre a saúde mental foi aprovada na generalidade no Parlamento, no dia 14 de outubro, um diploma que vem substituir a legislação em vigor há cerca de 20 anos. Esta lei limita um pouco mais a possibilidade de um internamento compulsivo, remetendo este para situações de último recurso. Alguns profissionais insurgiram-se contra esta directiva, argumentando que essa limitação pode retirar a possibilidade de “tratar” pessoas que não têm noção da sua “doença” e que, desta forma, lhes é negado o direito ao tratamento.

Por muito louvável que seja este princípio, parece-me de bom senso o legislador colocar dúvidas ou barreiras no que toca à privação da liberdade e à determinação por outrem da necessidade de tratamento. Vamos ser francos. O que é que está a ser tratado num internamento psiquiátrico?

Se se fizesse um estudo sério sobre os resultados terapêuticos dos internamentos psiquiátricos, tenho poucas dúvidas que os resultados iriam ser desastrosos. Bastaria darmos voz a quem por lá passou e seria esmagador o número de pessoas que reportaria ter saído pior do que entrou, com mais um trauma grave por resolver. E não vale dizer que quem está “doente” tem uma opinião distorcida, têm direito a ela e confesso que até hoje todos os relatos que ouvi me pareceram lúcidos e válidos.

Infelizmente, o internamento psiquiátrico continua a ser maioritariamente um instrumento de controle social e muito pouco um instrumento terapêutico. A discussão não devia ser se o internamento é ou não necessário. Não tenho dúvidas que, em casos excepcionais e como último recurso, o internamento pode ser importante para conter e acalmar alguém que está em choque com a vida e em profundo stress mental, sem recursos humanos ou materiais para sair do loop emocional em que se encontra. Mas não é preciso estudar muito para perceber que quem está em sofrimento precisa de um “santuário”, não de um “inferno”.

Como é possível que se considere “tratamento” a um ambiente profundamente iatrogénico, despersonalizado, autoritário, muitas vezes indigno e com foco quase exclusivo em psicofármacos? Não é este o texto da lei mas é, infelizmente, a prática comum.

O internamento psiquiátrico deveria ser, por excelência, o local mais terapêutico de toda a hierarquia de cuidados. E o que entendo aqui por terapêutico é baseado, essencialmente, na qualidade das relações humanas. Um local onde as pessoas se sintam bem vindas, confortáveis, onde possam ser ouvidos e descansar da vida, nem que seja por uns dias. Um local onde também possa existir um leque de possibilidades terapêuticas, contacto familiar e apoio psicossocial. A psicoterapia, nos seus vários formatos, as terapias expressivas e mesmo o recurso a psicofármacos podem ter o seu lugar, desde que adaptados às necessidades de cada um e decididos com tempo, em rede, e com respeito por todas as vozes, de forma horizontal. Um local de passagem, mas com relações de qualidade, onde se plantem sementes para novas terapias, com continuidade e com articulação permanente com o mundo exterior.

Embora já tenha tido piores dias, o internamento continua a ser uma ruptura, um trauma, uma descontinuidade. E não só para os pacientes, também para os profissionais, que se sentem presos num sistema de “medicina defensiva” agindo, muitas vezes, contra os seus próprios valores. Como é possível que uma decisão tão fundamental e profunda como a restrição da liberdade e o internamento involuntário de urgência seja decidida por um médico psiquiatra isolado, num ambiente da alta pressão, com salas de espera cheias de pessoas em sofrimento e onde a opinião de outros colegas, enfermeiros, internos de psiquiatria ou outros profissionais não conta para nada? No limite, e porque não existem sistemas alternativos de qualidade na comunidade, o psiquiatra sente-se pressionado, defensivamente e para evitar ser responsabilizado por algum dano futuro, a internar contra vontade.

Muitas das situações de internamento involuntário poderiam ser evitadas se existissem cuidados de apoio na crise psiquiátrica com base relacional e dialógica, indo ao encontro da pessoa e adaptando-se às suas necessidades e ao seu contexto, como acontece em alguns serviços de excelência da Finlândia, Inglaterra, Alemanha e outros países.

Tudo isto é, contudo, utopia, num sistema que é perversamente financiado e gerido pelo número de camas ocupadas ou pelo número de actos médicos. Quanto maior a ocupação e rotatividade mais o departamento de psiquiatria recebe. E assim, sistema, profissionais e utentes colidem na co-criação do sistema de porta giratória, onde se entra, sai-se rapidamente e com mais um trauma, apenas para voltar passados 15 dias ou um mês porque nada ficou resolvido, tudo se agravou.

Em Inglaterra, na chamada “Community of Communities” do Royal College of Psychiatrists foi criado o Sistema “Enabling Environments” em 2002. Como explica o website do Royal College, Enabling Environments são locais onde o foco é a construção de um ambiente social positivo e eficaz e onde as relações saudáveis são vistas como a chave do sucesso. São ambientes onde as pessoas são valorizadas, onde existem pessoas que nos apoiam realmente a crescer, a pertencer e a desenvolvermo-nos, onde somos ouvidos e respeitados.

Para que as minhas palavras façam um pouco mais sentido, sugiro ao leitor hesitante, se for capaz de fazer esse exercício, que se imagine em situação de intensa crise psiquiátrica, e que se pergunte a ele próprio onde e como gostaria de obter ajuda, se o internamento hospitalar psiquiátrico lhe pareceria um opção segura e confortável.

Os serviços devem adaptar-se às necessidades das pessoas e não o contrário. A grande maioria das pessoas que são conduzidas involuntariamente às urgências psiquiátricas querem e precisam de ajuda. Precisam de ser ouvidas e respeitadas, e a ajuda precisa de ser adequada às necessidades. Não é forçando um tratamento com o qual não concordam, num ambiente relacionalmente pobre e autoritário que vão recuperar. Chamar a isso tratamento é inqualificável e retrógrado.

- Sobre João G. Pereira -

João G. Pereira é psicólogo, doutorado em Psicoterapia pela Middlesex University e psicoterapeuta registado no United Kingdom Council for Psychotherapy. Iniciou a sua vida profissional em Lisboa e Barcelona tendo-se fixado, posteriormente, no Reino Unido, onde viveu e trabalhou durante 10 anos, maioritariamente em departamentos de psiquiatria do sistema nacional de saúde (NHS). A sua desilusão com o sistema psiquiátrico tradicional levou-o a estudar sistemas mais relacionais e humanistas, tendo acabado por juntar-se à Fundação Romão de Sousa e ao seu projecto “Casa de Alba”, que dirige desde 2013. Desenvolveu o sistema de Comunidades Terapêuticas Democráticas em Portugal e esteve na origem do movimento “Open Dialogue” português, inspirado pelas suas visitas à Lapónia Finlandesa, Norte da Noruega e Nova Iorque. Também em Portugal foi Professor Auxiliar Convidado na Universidade de Évora e colaborou em estudos Pos-Doc de Filosofia Psiquiátrica na Universidade Nova. Tem interesse particular no desenvolvimento da relação terapêutica e na intersecção entre a psicanálise relacional, a filosofia e as neurociências afectivas, em particular na área da mentalização, que levou à sua acreditação no British Psychoanalytic Council. É actualmente Presidente da International Network of Democratic Therapeutic Communities, supervisor e professor de psicoterapia no Metanoia Institute em Londres. É autor de vários artigos em jornais científicos, tendo co-autorado e editado os livros “Schizophrenia and Common Sense” da Springer-Nature e “The Neurobiology-Psychotherapy-Pharmacology Intervention Triangle” da Vernon Press.

Texto de João G. Pereira
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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