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Psiquiatria Lenta: Tolerância à incerteza

Na crónica Psiquiatria Lenta deste mês, João G. Pereira explica-nos em que consiste o “open dialogue”.

Texto de Redação

Fotografia da cortesia de João G. Pereira

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O Princípio de Incerteza de Heisenberg postula, sucintamente, que é impossível medir ao mesmo tempo e com exactidão a quantidade de movimento e a posição de uma partícula. Quanto mais precisa é a medida do movimento mais incerta se torna a posição e vice-versa. Este princípio marcou uma ruptura epistemológica fundamental com a física clássica, abrindo caminho à física quântica. Por analogia poderíamos dizer que, na saúde mental, quanto mais precisos tentamos ser na definição de diagnósticos ou planos de intervenção, mais distantes ficamos da pessoa à nossa frente e do seu mundo emocional. Na posição inversa, quanto mais nos dispomos a estar presentes emocionalmente e a conhecer a pessoa em sofrimento, maior incerteza temos do diagnóstico e do plano a seguir, ficando evidente a falibilidade e limitação de qualquer definição categórica.

Há pouco mais de 5 anos, em Setembro de 2017, visitei o Hospital Keropudas na Lapónia Finlandesa. Foi aqui que, nos anos 80, surgiu o sistema psiquiátrico “Open Dialogue” caracterizado, entre outros princípios, pelo da Tolerância à Incerteza. Fui recebido pelas psicoterapeutas Mia Kurtti e Anni Haase, juntamente com um pequeno grupo de pessoas de vários cantos do Mundo. Senti desde a chegada um ambiente acolhedor e caloroso, contrastando com o frio da Finlândia e com a imagem de distância emocional que por vezes se tem da Escandinávia. Ia preparado para uma formação intensa, queria aprender o máximo sobre o sistema, apetrechado de caderno e caneta para tomar notas. Contudo, fui desarmado com a questão “how would you like to spend your time here”? Esta pergunta aberta tornava a experiência relacional e marcava a forma como nos queriam conhecer, conferindo ao grupo a agência psicológica e a co-construção da formação. Nesse momento comecei a entender o que era a dialogia, e como este conceito transcendia o simples diálogo com palavras entre duas ou mais pessoas.

Mikhail Bakhtin, filósofo que analisou a obra de Dostoiévski, referiu que o autor, para além de seguir uma linha dialógica, tinha inaugurado um novo estilo literário, a novela polifónica, onde existe uma multiplicidade de vozes equipolentes e histórias que se cruzam. Disse Bakhtin que “to live means to participate in dialogue (…) in this dialogue, a person participates wholy and throughout his whole life: with his eyes, lips, hands, soul, spirit, with his whole body and deeds”. Estas ideias parecem simples mas acabam por marcar uma diferença de paradigma nas ciências humanas, cruzando-se com muito do que a neurociência afectiva nos mostrou mais tarde, que somos seres dialógicos (intersubjectivos) desde a primeira vez que respiramos, que não nascemos tábua rasa, recipientes passivos do que o ambiente nos impuser e que desde o primeiro momento nos construímos em interação, que nos influenciamos de forma mútua e recíproca e que vamos ganhando existência no olhar e resposta dos outros. Sem responsividade, sem diálogo, morremos.

Este primeiro encontro com Mia e Anni foi o reflexo dos dias seguintes e também das reuniões terapêuticas a que assistimos, onde não se trabalhava só com o indivíduo mas também, e essencialmente, com o seu contexto. As reuniões contavam com a presença de todos, pessoa no centro das preocupações (a quem no sistema tradicional chamam de “doente”), rede social de suporte, psicólogo, psiquiatra e outros profissionais. Não se notavam hierarquias nem vozes dominantes, funcionavam em pleno dialogismo e polifonia.

Dado que não somos seres isolados nem existe a mente isolada, é de estranhar que os serviços de saúde mental continuem com um foco individualista e sintomático. Como se houvesse qualquer coisa dentro da pessoa para descobrir e curar. No sistema aqui proposto, o diálogo não é um meio para descobrir o interior já constituído da pessoa. O diálogo é um fim em si mesmo. O indivíduo e o seu  contexto constituem-se e descobrem-se no próprio diálogo. Já Tom Anderson, psiquiatra norueguês, nos dizia que as palavras não transmitem os pensamentos, mas que construímos o pensamento através das palavras e à medida que as vamos expondo.

Penso que o que mais assusta quem toma contacto pela primeira vez com o Open Dialogue é a falta de estrutura, a ausência de planos e a abertura radical ao que surge no momento. É um dos princípios chave do sistema, a Tolerância à Incerteza. Um psiquiatra, um psicólogo ou outro profissional de saúde têm rituais e formas de trabalhar muito estruturadas, e não é fácil abdicar da segurança que o “pedestal” da profissão lhes dá em frente a um “paciente” e a uma família.

Talvez seja pertinente lembrar que a palavra “clínica” tem uma das suas origens no grego “Klnike Tekhne”, que significa “prática à beira do leito”. No seu início e durante séculos, o que o médico oferecia era o que ainda hoje se chama “bedside manner”, ou seja, a sua forma de estar com o paciente. Entretanto, e não retirando as vantagens inerentes, a medicina e a psiquiatria enriqueceram-se de “tecnologias”. O problema é que a par desse avanço tecnológico foi-se assistindo a um declínio marcado da “bedside manner”, considerada por muitos até como irrelevante, apesar da investigação mostrar consistentemente o contrário.

Uma das potencialidades do Open Dialogue e de outros sistemas relacionais e democráticos é o desenvolvimento pessoal efectuado pelos próprios profissionais, que abdicam de serem peritos/autoridade para se relacionarem de forma horizontal e colaborativa. O conhecimento e a experiência não precisam de ser legitimados pelo uso da bata ou por um manual. A posição monológica e a utilização de artefactos para garantir autoridade poderão até ser úteis para quem parte uma perna, contudo, deixam de fazer sentido para quem está ansioso ou deprimido ou, pior ainda, com tanto medo de tudo que suspeita até que a pessoa da bata lhe queira fazer mal. Apesar do físico e do mental serem inseparáveis, a tentativa de equiparar os cuidados em saúde mental com os cuidados em saúde física é apenas outro dos erros dos nossos dias.

- Sobre João G. Pereira -

João G. Pereira é psicólogo, doutorado em Psicoterapia pela Middlesex University e psicoterapeuta registado no United Kingdom Council for Psychotherapy. Iniciou a sua vida profissional em Lisboa e Barcelona tendo-se fixado, posteriormente, no Reino Unido, onde viveu e trabalhou durante 10 anos, maioritariamente em departamentos de psiquiatria do sistema nacional de saúde (NHS). A sua desilusão com o sistema psiquiátrico tradicional levou-o a estudar sistemas mais relacionais e humanistas, tendo acabado por juntar-se à Fundação Romão de Sousa e ao seu projecto “Casa de Alba”, que dirige desde 2013. Desenvolveu o sistema de Comunidades Terapêuticas Democráticas em Portugal e esteve na origem do movimento “Open Dialogue” português, inspirado pelas suas visitas à Lapónia Finlandesa, Norte da Noruega e Nova Iorque. Também em Portugal foi Professor Auxiliar Convidado na Universidade de Évora e colaborou em estudos Pos-Doc de Filosofia Psiquiátrica na Universidade Nova. Tem interesse particular no desenvolvimento da relação terapêutica e na intersecção entre a psicanálise relacional, a filosofia e as neurociências afectivas, em particular na área da mentalização, que levou à sua acreditação no British Psychoanalytic Council. É actualmente Presidente da International Network of Democratic Therapeutic Communities, supervisor e professor de psicoterapia no Metanoia Institute em Londres. É autor de vários artigos em jornais científicos, tendo co-autorado e editado os livros “Schizophrenia and Common Sense” da Springer-Nature e “The Neurobiology-Psychotherapy-Pharmacology Intervention Triangle” da Vernon Press.

Texto de João G. Pereira
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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