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Resistências atlânticas, libertações e escrita: repensando o género

Noemi Alfieri, investigadora e membro do Cluster for Advanced African Studies em Bayreuth, na Alemanha, fala-nos do importante papel das mulheres escritoras nas redes da resistência anti-colonial no século XX.

Texto de Gerador

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Qual o lugar das mulheres, ao falarmos de resistências e libertações? A pergunta é obviamente provocatória e retórica pois, apesar da subrepresentação de género em várias áreas e contextos, o lugar das mulheres é em qualquer lugar/todos os lugares.

Nós, mulheres (todas, independentemente de fatores biológicos), participamos ativamente de todos os sectores da sociedade, desde o quotidiano até à política, à ciência e à administração. O que frequentemente acontece, contudo, é que a presença das mulheres é pouco visível, sendo a sua agência invisibilizada ou relegada a áreas específicas da vida social e intelectual, de acordo com uma lógica que ainda segue binarismos e padrões de opressão das sociedades patriarcais e da sua orientação capitalista.

No caso de Portugal, a forma como as mulheres são representadas na vida social, em que os seus lugares e papéis são imaginados, pensados e reproduzidos, está enraizada – pelo menos no que concerne os tempos recentes – nas consequências da propaganda difundida durante o regime salazarista. Não é um mistério que, durante a ditadura, jornais, rádio, meios de comunicação e até comunicações oficiais promovessem uma imagem tradicionalista e católica das mulheres, “belas, recatadas e do lar”, cujos papéis principais estavam relacionados com a educação dos “filhos da pátria”, a manutenção e cuidado do lar, etc.  Apesar de estas questões poderem parecer longínquas no tempo, é também inegável que lemas como “Deus, pátria e família” estejam a viver um forte revivalismo, sendo invocados em vários contextos a nível global, por partidos políticos reaccionários em Portugal, Itália, Brasil, entre outros. É, portanto, importante não só pensar nas permanências que as propagandas dos regimes fascistas tiveram em âmbito nacional e internacional, mas tentarmos refletir sobre o que acontecia, na realidade, nas sociedades sobre as quais nos estamos a debruçar: porque se é verdade que, por um lado, esses papéis de género tinham um efeito sobre a vida das mulheres e, portanto, sobre a sociedade como um todo, ainda mais importante é sublinhar como outras formas de sociabilização, vivências e formas de existir e estar no mundo além desses padrões, foram possíveis.

A opressão gerada pela visão estereotipada da mulher que foi veículada pelo regime salazarista era agravada e combinava-se, em territórios colonizados, com a ideia de missão civilizadora. Essa ideia tal como publicitada pelo regime assentava, não obstante a “maquilhagem” com qual era apresentada à opinião pública, em premissas essencialmente racistas, de acordo com as quais a cultura portuguesa seria superior às várias culturas africanas dos povos sobre os quais Portugal exercia um domínio político, económico e social. A teoria lusotropicalista foi, neste sentido, essencial na viragem do Segundo Pós-Guerra, numa altura em que as pressões internacionais para com as descolonizações políticas e os regimes fascistas se intensificava.

Durante as lutas de libertação, que se espalhavam pelo continente visando as independências políticas, os textos literários – nomeadamente os da chamada “literatura de combate” -  foram muito relevantes para a difusão das resistências no espaço atlântico, muito para além das causas anti-coloniais. Desde Angola, Moçambique ou São Tomé os textos chegavam a Lisboa, mas também a São Paulo, Dakar, Paris, Ibadan ou Roma. Isto era possível através de revistas como a Mensagem, a Présence Africaine ou Black Orpheus, mas também através de órgãos de imprensa da propaganda internacionalista. As mulheres contribuíram ativamente para as lutas, em vários campos. Não foi por acaso, por exemplo, que o Centro de Estudos Africanos foi fundado em Lisboa, na Rua Actor Vale 37, naquela que os estudantes e militantes anti-coloniais chamavam de “Casa da Tia Andreza”, a tia de Alda Espírito Santo. Escritora, pedagoga e feminista (apesar de não se definir como tal), Espírito Santo foi uma figura proeminente das lutas nos anos ’50 do século passado, que com a sua escrita trouxe para a poesia o quotidiano das mulheres são-tomenses, os anseios de justiça e o amor à terra. Tal como a moçambicana Noémia de Sousa, os poemas de Alda são habitados pelas palayés, as trabalhadoras do comércio informal, mas também pelas prostitutas ou pela sabedoria das mulheres mais velhas que carregam a história do povo, como as cocuanas (lit: avós) que contam histórias na roda do Karingana Wa Karingana, expressão – essa – cara também a José Craveirinha. Todas essas mulheres atravessam os textos na plenitude e complexidade da(s) existência(s) de mulheres diversas entre elas, fugindo do estereótipos e categorizações simplistas. O contexto colonial exercia nas mulheres negras uma opressão muito específica, relacionada não só com o papel que a sociedade colonial supostamente reservaria às pessoas não brancas, mas relacionado, também, com um contexto em que tudo o que era alheio às normas sociais, culturais e políticas da branquitude euro-cêntrica e patriarcal sofria não só de discriminações sistémicas (facto de que as sociedades contemporâneas não estão isentas), mas também do peso de um aparato legislativo que legitimava administrativamente o epistemicídio. Neste sentido, quando pensamos em mulheres que escreviam como a Alda ou a Noémia, mas também como Deolinda Rodrigues, que foi uma intelectual e guerrilheira na libertação de Angola, ou Alda Lara, importa sim refletir sobre o papel político que elas tiveram no universo do ativismo e da consciencialização através da cultura. É igualmente importante, porém, perguntarmo-nos em que medida a sua experiência enquanto mulheres foi intrinsecamente política para além do político, no período histórico das libertações e da luta contra um sistema opressor cujas teias se entrelaçavam no espaço Atlântico.

Lembrar o papel que estas escritoras tiveram no contexto das redes de resistência, tanto numa óptica de combate ao colonialismo, como de combate ao fascismo e de empenho na construção de sociedades mais dignas para todos, é desconstruir a ideia de que essas foram lutas só de homens. Não só as resistências foram práticas transversais ao género: a imaginação política também o foi. Conseguimos ver isso nas produções literárias, quando Noémia de Sousa invoca os spirituals de Harlem, quando afirmava nos seus poemas “altiva e mística, /África da cabeça aos pés, /—ah, essa sou eu!”. Sabemo-lo, como dissemos acima, devido ao facto do CEA, em que se reuniam intelectuais, ativistas e nacionalistas africanos como Amílcar Cabral ou Agostinho Neto, ser na casa da Tia Andreza. Sabemo-los porque Noémia, que começou a escrever fingindo ser o seu irmão, remetia clandestinamente correspondência entre Viriato da Cruz e Amílcar Cabral. Sabemo-los porque Deolinda Rodrigues, escritora, guerrilheira e quadro durante a guerra de libertação, viajou até ao Brasil e aos EUA, trocando cartas com Martin Luther King, sendo depois morta juntamente com outras camaradas. Sabemo-los porque Alda Lara escreve de – e sobre - Angola, referindo-se à “longa história inconsequente“ e reconhecendo que “paz é luta...“. Vemos, assim, que os limiares do género mais tinham a ver com dualidades, oposições e binarismos perpetuados pelas opressões, enquanto a imaginação política ultrapassava, na medida do que o contexto permitia, essas mesmas dualidades.

- Sobre a Noemi Alfieri-

Noemi Alfieri é actualmente Fellow do Africa Multiple Cluster for Excellence da Universidade de Bayreuth, na Alemanha. É investigadora colaboradora do CLEPUL (FLUL, Universidade de Lisboa), do CHAM (NOVA-FCSH), Membro Associado do CREPAL (Sorbonne Nouvelle) e do Grupo de Pesquisa Áfricas (UERJ-UFRJ).

Ocupa-se, de momento, de projetos editoriais africanos entre 1950 e 1970. A sua investigação foca-se na mobilidade de objetos, pessoas e ideias através das redes transnacionais estabelecidas em África, Europa e América Latina por escritores e intelectuais negritudinistas, Pan-Africanistas ou anticoloniais nessas décadas, com atenção especial para a sub-representação da agência de mulheres nas narrativas históricas e acadêmicas produzidas sobre esses ambientes culturais. A sua tese de doutoramento “(Re)Construir a identidade através do conflito. Uma abordagem às Literaturas Africanas em Língua Portuguesa (1961-74)” foi distinguida com uma menção honrosa no Mário Soares - Fundação EPD 2021. É membro dos projetos de investigação AFROLAB - A construção das literaturas africanas em Portugal (FLUL, de que foi bolseira de Pós-Doutoramento) e WOMENLIT - Literatura de Mulheres: Memórias, Periferias e Resistências no Atlântico Luso-Afro-Brasileiro (NOVA-FCSH).

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