No pós-guerra, até aos anos 70, presumia-se que as penas de prisão eram para ser usadas em última instância. Criou-se o anseio de se acabar com o seu uso para reprimir opiniões e oposições. Fazer presos de consciência ou presos políticos tornou-se sinal de totalitarismo.
A partir dos anos 80, e sobretudo 90, a globalização fez-se acompanhar pelo aumento do número de presos, sobretudo vítimas da guerra contra as drogas. A democracia tornou-se consensual com a implosão da União Soviética. As penas alternativas à prisão não reduziram o número de presos: permitiram o aumento do número de condenados. Prisões sobrelotadas tornaram-se supermercados de drogas ilícitas.
Nos paraísos fiscais, só entram as elites. Nas prisões, do outro lado do espectro social, entram sobretudo peões de guerras surdas e despolitizadas. Os crimes contra a economia, contra o meio ambiente, contra as sociedades, se tomarmos apenas em conta os registos criminais, são realizados por pilha-galinhas. Os crimes de colarinho branco só não são completamente impunes porque se intensifica a ansiedade para combater a corrupção. Como se costuma dizer, algo tem de mudar para que fique tudo na mesma.
A Revolução dos Cravos de 1974 libertou os presos, cujo número vinha diminuindo consistentemente em ditadura. A democracia encheu as prisões. As democracias, incluindo a portuguesa, revelaram-se vulneráveis aos discursos estigmatizantes dos políticos duros com o crime. Muito antes do surto fascizante que se instalou na vida política global, na segunda década do século, para ser político ou magistrado é preciso ter estômago para se conformar com os abusos do uso das condenações criminais. Face a este problema moral e político, os partidos acordaram entre si não discutir publicamente o assunto e acordar por unanimidade, à porta fechada e previamente, aquilo que fazer neste campo.
Esta é uma das dimensões do consenso democrático interpartidário de regime. Consenso que tem proporcionado o prestígio das atividades repressivas das polícias. Nos inquéritos de opinião, o prestígio das polícias aparece sistematicamente muito acima do prestígio das instituições democráticas e dos partidos. Partidos com argumentos policiais têm subido rapidamente nas sondagens e nas eleições.
A despolitização da vida democrática foi feita à custa de exclusão dos casos de polícia da discussão partidária e política. Tem por consequências a elitização da política institucional, a exclusão social, a tabloidização da comunicação social, o protagonismo de personagens policiais nas telenovelas e de personagens mediáticas na política, as votações eleitorais personalistas, em vez de serem de avaliação de programas políticos, etc.
Ainda que haja uma independência entre o poder político e o poder judicial, este último não é apolítico. Pelo contrário, quanto mais fraco o poder judicial se encontra, devido às políticas de globalização, desregulação e desterritorialização das jurisdições, mais se sente tentado em manifestar com ímpeto o poder que lhe sobra. À medida que os governos neoliberais se alinham mais com as necessidades das empresas, a justiça penal condena mais gente excluída, reforçando as exclusões socioeconómicas com estigmas penais.
Como dizem os sociólogos, o aumento das desigualdades sociais, o aumento dos privilégios das elites e das práticas estigmatizantes dos estados e das sociedades, é uma base frágil para as democracias se manterem.
Lutar pela democracia implica compreender a necessidade de minimizar os processos de criminalização. Compreender como as classes médias se sentem, ao mesmo tempo, defendidas e ameaçadas pelas polícias e pelas políticas do Estado. Tal como alguns dos imigrantes que votaram na extrema-direita se arrependeram de o terem feito, por terem sofrido pessoalmente a senha criminalizadora contra os trabalhadores estrangeiros, assim outros elementos das classes médias continuam a esperar mais do moralismo do que da racionalidade política, até que caem na pobreza envergonhada e ressentida e se entregam à vingança.
- Sobre António Pedro Dores -
É doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), onde é professor auxiliar com agregação no Departamento de Sociologia. É autor de várias obras publicadas, tais como Prisões na Europa – Um debate que apenas começa (2003), Vozes contra o silêncio – Movimentos sociais nas prisões portuguesas (2004), Espírito de Submissão (2009) e Segredos das Prisões (2013). É abolicionista e foi o fundador da Associação Contra a Exclusão e pelo Desenvolvimento, que promovia os direitos de liberdade de expressão de pessoas reclusas. É o cronista convidado na sequência da reportagem «Crime e castigo ou crime e ressocialização: para que servem as prisões?».