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Raül Refree: “A música foi feita para contar emoções puras que não se expiram”

Estávamos a 22 de novembro. O relógio assinalava cerca das 21h quando Raül Refree e…

Texto de Patricia Silva

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Estávamos a 22 de novembro. O relógio assinalava cerca das 21h quando Raül Refree e Lina subiram ao palco do Teatro Maria de Matos, em Lisboa. A sala estava cheia, ou melhor, se havia lugares vazios não se mostravam relevantes naquele momento. As atenções concentravam-se num palco que, desde logo, se mostrava um poço de emoções.

Ao longo de cerca de uma hora e meia os olhos de cada espectador que os ouvia viajava pelas paredes que se pintavam de sombras. Ouviam-se choros emotivos, experiências transversais que mesmo diferentes não deixavam nenhuma daquelas pessoas ali sentadas indiferente.

Quase ao centro do palco estava Raül no piano e rodeado de outros instrumentos peculiares e analógicos. De seguida entra Lina, de roupa com tons escuros. Nas harmonias e na voz que conduzia um repertório incalculável, ouviu-se Amália. Ouviu-se Lina. Ouviu-se o fado que, naquele dia, não se fazia acompanhar da guitarra portuguesa. Ainda assim "prendia", mesmo que não se ouvissem as cordas ou o dedilhar. A este feito se abraçava Raül, artista e um dos produtores europeus mais inovadores da última década.

Sempre interessado na música popular, deu uma nova perspetiva ao flamenco, produzindo e tocando com artistas como Rocío Márquez, Niño de Elche ou Kiko Veneno e fez álbuns duo com Rosalía e Sílvia Pérez Cruz. Em 2020, Raül Refree produziu vários outros álbuns, incluindo um álbum Lee Ranaldo, do Sonic Youth (Names of North End Woman).

Sem adornos, sem amplificação, "o mais orgânico possível." Foi assim que Lina e Raül se cruzaram. Numa casa de fados. Na primeira em que o artista entrou, fez-se história. Lina_Raül Refree surgiu ainda antes de ganhar forma. Os artistas tiveram a sua estreia ao vivo em Julho 2019 nos Festivais La Mar de Músicas e Sinsal e vão caminhando juntos até então.

Com uma digressão que se prolonga até 2022, fazem-se ouvir naquele lugar onde culturas se cruzam e dão forma a um fado que é tanto português como do mundo. O Gerador questionou e o produtor levou-nos a viajar consigo ao longo das memórias dos últimos dois anos e a esse lugar onde está o fado.

Raül Refree // fotografia de Alex Rademakers

Gerador (G.) - Como é que nasce este processo criativo com a Linaartista portuguesa, e com o Fado, enquanto relação cultural? Sabemos que o disco foi criado em 2020, mas sentiste que no último ano ele tornou-se ainda mais presente na vida de quem vos ouve?

Raül Refree (R.R.) - Bem, como sabes, a história do projeto nasce a partir da Carmo Cruz que veio ter comigo depois de ouvir os discos que eu tinha feito, voltados para o flamenco e a música tradicional espanhola. E ela pensou que era uma boa ideia para mim fazer um disco de fado. No início, eu imaginei de imediato que seria um conceito interior e mais pessoal, que levaria à composição deste disco e que estaria também relacionado com a leitura pessoal de Lina.

Sendo a Lina também uma grande conhecedora do fado, achei que era uma boa maneira de o abordar, de fazer esta releitura, a partir da falta de conhecimento que eu tinha naquele momento do registo musical, ou seja, do fado.

Portanto, a forma como tocávamos, cantávamos, e como este álbum foi escrito começa com a Lina a cantar-me velhos fados de Amália e eu tocava-os. Tocava primeiro o que sentia, de acordo com a emoção e com o que íamos sentindo e não tanto de acordo com as regras baseadas no conhecimento ou algo aprendido e técnico. E foi assim que este álbum foi criado. É claro que já passaram dois anos. Uma vez gravado o álbum aprendi, obviamente, muito durante este tempo. Ao nível do Fado, sei muito mais e também é verdade que conheço muito melhor o disco, depois de o ter tocado nos diferentes teatros de toda a Europa.

O disco e a forma como o abordo tem dado muitas voltas e reviravoltas até chegar aqui, ao agora. Penso que a atuação ao vivo, como podes ver, continua a refletir a mesma atitude que eu tinha quando estava a gravar, mas agora, claro, sabendo tudo de uma forma muito mais exata e dando-lhe vida em novos territórios.

G.- Existe também uma particularidade muito interessante voltada para os diferentes registos e nomes que surgem no disco. Mais do que se ouvir fado de Amália, há também referências como é o caso de António Variações. Era também esta diversidade que procuravam tendo a Amália como um ícone?

R.R. - Bem, o tema de António Variações tem várias leituras. Uma é uma grande massa, que é o fim do álbum. Por outras palavras, pensamos que Amália foi uma grande experimentadora dentro do fado, apesar de muitas vezes os puristas - e isto acontece em todos os estilos de música -, quererem pensar que Amália é intocável.

Eu acredito que Amália teria gostado se pudessem ter experimentado a sua música. E a canção de António fala precisamente do facto de todos os portugueses terem Amália dentro de si, mas ao mesmo tempo, ele é um grande outsider. É como uma pequena homenagem a todas as pessoas que têm visões diferentes da música e das coisas, isto é, que não pensam como a maioria.

Por outro lado, a outra leitura é que cheguei a Lisboa a pensar no disco anterior, antes de começar a gravar, com a ideia de que ia gravá-lo com a guitarra. Na verdade, tinha acabado de fazer vários discos em que tocava guitarra que tinham tido muita repercussão, como é o caso do disco que fiz como duo com Sílvia e com Rosalía e pensei que poderia ser uma continuação com o fado.

Quase nunca tinha tocado piano, nem ao vivo nem em disco. Foram poucas as vezes. E quando começámos a tocar, inicialmente, não me sentia à vontade com a guitarra. Não sei, foi um sentimento muito pessoal, mas quando comecei a tocar piano, era como se tudo se alinhasse. Eu gostava. Pensava que era aquilo. Foi como algo muito orgânico e muito natural. E achei muito engraçado que a canção, o tema extra, seja como a mais estranha do disco que volta à guitarra, quase como um jogo, não? Gostei da ideia!

Este deixar a guitarra para pegar no piano traz-nos algo muito curioso. A relação com os instrumentos eletrónicos não tem, de todo, como objetivo transformar este disco em música eletrónica, pois não?

R.R. - Sim, insisto muito quando as pessoas falam comigo em entrevistas sobre eletrónica e penso que não há nenhuma eletrónica no álbum, são quase todos instrumentos analógicos. É verdade que existem sintetizadores e há texturas sintetizadoras, mas todos eles são sintetizadores muito antigos. O que eu utilizei são instrumentos dos anos setenta. Depois um Roots, um Wurlitzer, os seus instrumentos já são clássicos para mim, embora seja verdade que a abordagem é muito contemporânea e a forma de compreender as texturas o seja também. No entanto, o instrumental em si é muito clássico.

G.- É também, partindo desta prática instrumental que podemos perceber esta experimentação constante entre a música tradicional espanhola e a música portuguesa. Sentes que estamos num processo de desconstrução e desmistificação do que é a música tradicional?

R.R. - Bem, quero salientar que, em Espanha, é verdade que todos sabem que o estilo musical que mais exportou é o flamenco, mas há muita música tradicional no norte, Galiza, Astúrias, León... Estas pessoas dir-vos-ão que, sim, toda a gente fala de música espanhola e o flamenco é uma música de um lugar muito específico. É bom que no final todos o saibam.

É verdade que tem sido muito exportada, penso que a música tradicional em geral, não só a do seu próprio país, mas também a música tradicional. É também verdade que existe uma questão de proximidade para que se possa compreendê-la melhor. Ou seja, não, não se move da mesma forma. Possivelmente a música tradicional de Taiwan é mais comovente do que o fado, ou o flamenco, ou a música galega. Mas há algo na música tradicional que penso que todos carregamos na nossa genética e que passou dos nossos avós para os nossos pais, dos nossos pais para nós, quase sem o saber. Ou seja, é algo que está nosso e que muitas pessoas não experimentaram, porque nos últimos anos acredito que a música tradicional tem sido muito menos vivida do que nos anos quarenta e cinquenta do século XX, pelo menos em toda a península. Mas há algo em nós que de repente nos emociona sem saber muito bem porquê.

Penso que há algo muito comovente na música tradicional que está relacionada com a ancestralidade. As canções foram feitas precisamente para contar o que sentimos, as nossas emoções e do que fomos feitos. No passado, eram cantadas para afogar as mágoas quando se estava triste ou para um ritmo de trabalho. Estas emoções puras persistem ao longo dos tempos, não se expiram.

G. - É caso para dizer que, não só perpetuamos essa tal genética que falávamos da música tradicional portuguesa e espanhola, como lhe damos outra visão ou até mesmo a resgatamos?

R.R. - Sim. Quando me dizem 'tu queres romper com as tradições ou com as regras'... Eu não quero romper as regras. Quando faço música, não tenho qualquer intenção de o fazer. Aliás, a minha única intenção é dar o meu ponto de vista sobre uma música em específico. É o que eu sou. É a minha leitura, porque é o que eu sinto naquele momento.

Sim, é verdade que alguns dos discos que fiz chegaram a muita gente e a muitos jovens, pessoas de todas as idades. E isso é algo que, na realidade, se olhar para ele de uma forma fria, é a forma como se perpetua as canções e se faz compreender a tradição. Mas, por outro lado, também não pretendo perpetuar a música tradicional. Pretendo fazer música que me emocione a mim, a ti, às pessoas que conheço e que gostam do que eu faço. Não pretendo perpetuar nada em específico.

Raül Refree // fotografia de Alex Rademakers

G. - Como foi esta chegada, depois de muitas outras, a Portugal e a sua descoberta quer com a cultura portuguesa quer com a tradição ao longo dos tempos?

R.R. - Bem, eu tinha viajado e tocado em Portugal diversas vezes, antes deste projeto, mas a verdade é que desde o primeiro momento, estava muito entusiasmado por me envolver na música portuguesa. É algo que estava muito próximo de mim. Como vivo em Barcelona, para mim, é muito excitante conhecer um estilo tão próximo, conhecê-lo de dentro e da mão de pessoas como a Lina, que o conhece muito, muito bem.

A Lina tem cantado fado durante toda a sua vida. Penso que começou a cantar o fado desde pequena, sempre acreditou que este era o seu caminho. Portanto, isto é realmente uma sorte, poder aprender com estes conhecedores e com as pessoas que o dominam.

Além disso, sei que a Carmo, uma referência excecional, estava muito interessada em envolver-me no projeto. Ela também foi muito amável e mostrou-me muitos lugares, apresentou-me a muitas pessoas e levou-me a visitar coisas como o clube de fado, pela primeira vez. Para mim foi vital para criar o conceito deste disco de que estamos a falar, porque quando ouvi a Lina cantar naquele espaço, naquela abóbada de pedra, numa sala muito pequena, com uma ressonância muito específica e onde os músicos tocam sem qualquer tipo de amplificação, sem microfones, sem nada, pensei que isso era muito importante, apesar de no disco, não ter um soar tradicional. Este sentido de espaço foi realmente marcante para mim e quis respeitar isso desde o início.

G.- Faz parte do processo da criação, muitas das vezes. Desde a sonoridade do espaço, a referência do local, a transformação orgânica ...

R.R. - Bem, muitas vezes, acredito que pensamos muito como ouvintes ou quando estás muito envolvido pensamos no trabalho de composição, certo? Mas não pensamos no espaço e ele é fundamental, porque a mesma nota num ou noutro espaço não tem que ver com o que se ouve lá. Não, se o gravar de muito perto com o microfone, é certo, mas se o gravarmos de muito longe. Até a gravação modifica a emoção nesse sentido, entre uma sala grande e uma sala pequena. É uma emoção completamente distinta.

G.- No geral, pensar nas diferentes culturas e na sua diversidade alimenta as diversas comunidades e sociedades. Neste sentido, é também trazer à tona a intervenção cultural e a forma como a cultura o pode fazer através de uma mudança de paradigma da música tradicional. Concordas que isso está a acontecer através da música?

R.R. - Entendo. Eu gosto de pop, não de tudo, mas há algumas coisas pop que adoro assim como algum rock ou o que quer que seja. Isso não significa que agora temos de mudar tudo.

Acredito que a reivindicação da tradição é a justificação do nosso passado de certa forma. Forma essa de fazer as coisas, onde as pessoas tinham mais importância, onde o artista toca, canta. Ele (artista) não é um deus intocável. Era através da comunidade, onde havia um sentido mais forte, em que tudo não estava globalizado. Cada aldeia, cada pequeno território, tinham os seus próprios costumes e todos se orgulhavam deles.

Recuperar tudo isso significa também recuperar muitas coisas que nos são úteis hoje em dia. Isso não significa que em muitos casos eu o veja. Afirmo também que, quando reivindico tudo isto, estou a reivindicar a igualdade das pessoas, estou a reivindicar o ambientalismo, o feminismo, porque, muitas vezes, essa tradição foi cantada pelas mulheres que passaram completamente despercebidas e que não foram reivindicadas.  
Estamos a falar também de todos destes valores. E, para mim, estes valores são essenciais para enfrentar estes próximos anos, porque o mundo, como sabem, está a seguir um caminho muito mau. Por isso, penso que envolve muitas coisas.
Sinto que tenho de fazer e tocar estas músicas, justificá-las, fazer com que os jovens compreendam, aliás, pessoas de todas as idades o compreendam o que significam e como as coisas eram vividas antes, antes do bem, antes da tremenda globalização que estamos a viver e das grandes plataformas musicais. Tudo isso é importante, sim.

G.- A necessidade de reivindicar também se foi assumindo naquele que é o afastamento entre o artista e as suas motivações. Pode ser também a música esse ponto de partida e manifesto?

R.R. - Sim, completamente de acordo.

G.- Falando sobre a necessidade de fazer a música acontecer. Podemos falar dos próximos passos com Lina e enquanto projeto individual?

R.R. - Sim, claro. Com Lina, que é do que estamos a falar agora e é importante, como sabes, o álbum teve uma muito boa receção internacional e já tocámos muito na Europa e ainda temos muitos concertos para fazer durante este próximo 2022.

Agora, penso que na primeira metade de 2022, temos vinte e quatro concertos. O que é ótimo! (risos) Alguns deles que não conseguimos fazer devido à pandemia, por exemplo Londres, que era para acontecer em março e abril de 2020.

Vamos terminar estes concertos e depois penso que é tempo de fazer uma pequena pausa para ganhar algum impulso e poder pensar em gravar um novo disco e continuar o projeto. Acredito fielmente que vale a pena.

A nível pessoal, trabalho e atuo como produtor, à parte dos meus próprios projetos e irei continuar a fazê-lo. Obviamente, não estou a dizer que não tenho muitas coisas, mas também não tenho mais tempo, porque estou envolvido em vários registos que considero interessantes. Um deles é agora um filme em que sou um dos protagonistas. Ontem cheguei das montanhas das Astúrias, onde não só estou a fazer a música, mas também sou ator, pela primeira vez! (risos)

G.- E como é que foi ter essa experiência, enquanto ator?

R.R. - Bem, estou a gostar. Passei dez dias no set a fazer as minhas sequências. Entretanto, estarei de volta para fazer mais durante 10 dias. Gostei muito quando a realizadora, com quem já trabalhei como músico no filme anterior, me propôs. Eu disse-lhe que era preciso ter em conta que eu nunca fiz nada do género e que talvez isso destruísse o filme. (risos)

Ela disse que não e que teria de ser eu a desempenhar este papel. Quando tomei a decisão de o fazer disse 'bem, se o fazes, fá-lo de uma forma muito consciente. Tens de perceber que és uma personagem, que não tens de pensar em ti. Apenas tens de fazer o que te é pedido e tentar fazê-lo da melhor forma possível.' É verdade, eles acompanharam-me durante as filmagens incrivelmente. Penso que as coisas correram bem. Estou a divertir-me imenso.

G.- Acaba por ser uma descoberta no processo de trabalho e de criação...

R.R. - Totalmente. E acho que não vou continuar a contracenar, porque é como se fosse algo muito especial, mas quando lá estou é difícil. Anteontem, filmámos uma cena noturna que foi muito chocante e difícil, porque as pessoas da aldeia onde eu estava, no filme, assediaram-me, até fisicamente. Isto era o propósito da cena. Quando cheguei ao hotel e fui dormir, não conseguia fazê-lo porque tinha vivido a cena quase como algo muito pessoal. Estas são experiências que penso que não viveria se não fosse por isto, sensações de irrealidade.

Diria que estou feliz. É um trabalho muito difícil, mas tem sido apenas uma experiência cinematográfica.

G.- Depois de toda a nossa conversa, creio que será interessante finalizar com memórias. Quais são as tuas memórias mais marcantes em Portugal? Ou associadas à cultura portuguesa?

R.R. - Bem, penso que a memória mais clara que tenho deste projeto, pelo menos foi esta primeira visita ao clube de fado, o que foi muito impressionante.

Lembro-me que há anos toquei num concerto do António Zambujo e com Sílvia, no Coliseu, creio, e houve um coro Alentejano que o acompanhou. Eu fiquei muito impressionado, achei-o bonito e ficou muito na minha memória.

Esta entrevista surgiu no âmbito do programa EP COLAB 2021, promovido pela AECID – Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, Embaixada de Espanha em Portugal e o Gerador, é um programa de atividades digitais que pretende colocar em contacto artistas e entidades culturais espanholas e portuguesas. Descobre mais aqui.

Gerador é parceiro da AECID
Texto de Patrícia Silva
Fotografias de Dénis Estevez

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