fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Disco Riscado: Ao cuidado dos profissionais do cuidado

*Esta é uma crónica do Luís Sousa Ferreira, inicialmente publicada na Revista Gerador 37. Esta semana, recorri…

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

*Esta é uma crónica do Luís Sousa Ferreira, inicialmente publicada na Revista Gerador 37.

Esta semana, recorri aos serviços de um sapateiro. Levei três sapatos que já estavam inutilizados pelas mazelas da vida para receberem uma nova. Por 21 euros, regressaram como novos e interrompi o círculo vicioso de décadas: utilizar, inutilizar e lixo. Com os sapatos ainda vieram alguns conselhos de manutenção, bem como formas de manter os sapatos na configuração ideal. A minha avó rir-se-ia de tal descoberta, mas hoje mandar reparar é exótico. Sinto que experimentei mais um passo para abrandar a cadeia do desperdício e para o favorecimento de um consumo mais local. Ora vejamos: apesar de estarmos a falar de um valor insignificante, recorri a um serviço prestando por um empreender local, que compra os seus materiais à drogaria da mesma rua e que ainda dinamiza uma pequena galeria de bairro em Ílhavo. Ao comprar uns sapatos novos, inevitavelmente mais caros, não estou certo de que a mesma percentagem desse dinheiro favoreça a comunidade, ou até mesmo o país. Sou um defensor do consumo local e da economia circular. Mas, efetivamente, não é um processo fácil e requer uma hiperconsciência das nossas ações.

A reciclagem, que é um mal necessário, é equivalente à medicação que nos ajuda a fazer a digestão depois de comermos alarvemente ao almoço. É uma desresponsabilização dos nossos atos de consumo, um penso rápido que nos permite manter o mesmo paradigma durante mais tempo. Temos de mudar os nossos modelos e concentramo-nos no desperdício. Escolher melhor, reduzir, reparar e, sempre que possível, consumir local. É o combate à t-shirt de 1 euro, feita sabe-se lá por quem e em que condições, criada para promover o monopólio de poucos e os caprichos de muitos. Viagens intercontinentais resultantes da deslocação de serviços essenciais para paisagens onde a força económica prevalece ao respeito pelos direitos humanos e ao equilíbrio dos ecossistemas.

Eu, enquanto designer, nunca fui muito amante da nova cadeira com a cor da moda, para a renovação anual do consumo em nome da economia de escala. Já percebemos que as grandes fábricas de operários estão a ser transformadas em grandes centrais mundiais de robôs e de grandes linhas de produção autónomas. Não posso dizer que me ofenda ver ações repetitivas, sem qualquer estímulo, a serem conquistadas por máquinas. Vejo até mais-valias, desde que se consigam transferir as pessoas para trabalhos que promovam as relações interpessoais, a criatividade e as profissões de amor e cuidado. Trabalhos que nos façam mais humanos e menos parafusos de uma engrenagem que nos transcende. Na linha da produção material, incluo nas profissões de amor e cuidado os artesãos e todos aqueles que reparam e constroem com as mãos.

Tenho grande apreço pela cultura material, pelo testemunho vivo dos objetos, por aquilo que eles representaram e representam nas relações humanas. Não sou um materialista, antes um humanista que procura o humano na produção e na patine que testemunha as vidas dos objetos. A minha casa é uma harmonia de vários móveis e objetos de décadas e proveniências diferentes. Heranças, oportunidades e ofertas em articulação para um ambiente cheio de memórias e sentidos. Novas peças também são muito bem-vindas, mas cada vez mais fujo da lógica descartável imposta pela necessidade constante de mudança de cenário. Se mantivermos e produzirmos objetos com sentido, as mudanças não implicarão, necessariamente, mais desperdício.

Não consigo chamar casa a um lugar standard e despersonalizado, ou ao pastiche pobrezinho do design nórdico, ou à reprodução massiva do layout da moda. Na casa também se articulam muitas outras profissões de cuidado como os colecionadores, os alfarrabistas, os designers, os arquitetos, os carpinteiros, os pintores e as costureiras. Pessoas que se sintonizam com o lugar, com os objetos e com as pessoas. Que se dedicam ao outro e à reconstrução do novo. Toda esta reflexão é feita enquanto mudo de casa, na mobilização dos meus pertences.

Regresso ao centro, passados seis anos e, com o tempo libertado pela baixa do turismo, vagueio por um centro lisboeta muito mais recuperado, felizmente, mas a acolher serviços descuidados. Se quiser, posso comer 10 pastéis de nata diferentes na mesma rua, mas não tenho nenhuma mercearia de bairro para fazer as minhas compras diárias. Se quiser, posso comer o very typical produto inovador, mas não tenho um café onde possa beber uma cerveja e comer um petisco. Aqui impera o luxo descartável, feito a partir da falsa madeira de MDF. Tudo quer ser autêntico, mas tudo cheira a falso, a «última hora», como se fosse um pasquim em três dimensões. Tudo feito para fora, uma Disneylândia do castiço, de quem sabe que precisa de fazer a diferença, mas que nada mais faz do que copiar, descaracterizar e dessintonizar.

Poderão achar-me conservador, mas há uma grande diferença entre inovador e descabido. Gosto do sentido do passado, da história e do legado, mas trato-o com uma mão de respeito e com outra de despudor. É mais do que legítima a reapropriação dos objetos e dos espaços para a construção de sentidos contemporâneos. Assim como a criação de novos símbolos que serão transformados pelas gerações vindouras. Acredito neste regime social, intergeracional e carregado de diferentes identidades. Mas na era do descartável, do descarta para o futuro, esse circuito é interrompido. Estamos alienados dos circuitos de produção, virtualizamos as relações e promovemos o consumo descartável. Tudo em nome de uma liberdade falsa, que não promove o compromisso e a relação. A fúria do novo sem o trabalho da criação promove uma dinâmica estéril e ansiosa. Uma dinâmica salta-pocinhas, sem projeto, sem método, sem mãos na massa e sem aprendizagem intergeracional. Este ciclo é tão vicioso para a sobrevivência no planeta, como para o essencial encontro para a vida humana. Abrandar é preciso. Se formos com mais cuidado, iremos mais juntos e a saborear os múltiplos caminhos possíveis e até todas das variantes de pastéis de nata da Rua Augusta.

-Sobre o Luís Sousa Ferreira-

Formado em design industrial, é o diretor do 23 Milhas e fundador do festival Bons Sons. Não acredita que a cultura em Portugal precise de uma revolução, mas sim de uma mudança de prisma. É o autor da crónica «Disco Riscado» na Revista Gerador.

Texto de Luís Sousa Ferreira
Fotografia de Raul Pinto
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

11 Março 2024

Maternidades

28 Fevereiro 2024

Crise climática – votar não chega

25 Fevereiro 2024

Arquivos privados em Portugal: uma realidade negligenciada

21 Fevereiro 2024

Cristina Branco: da música por engomar

31 Janeiro 2024

Cultura e artes em 2024: as questões essenciais

18 Janeiro 2024

Disco Riscado: Caldo de números à moda nacional

17 Janeiro 2024

O resto é silêncio (revisitando Bernardo Sassetti)

10 Janeiro 2024

O country queer de Orville Peck

29 Dezembro 2023

Na terra dos sonhos mora um piano que afina com a voz de Jorge Palma

25 Dezembro 2023

Dos limites do humor

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e manutenção de Associações Culturais (online)

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura II – Redação de candidaturas [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

5 JUNHO 2024

Parlamento Europeu: extrema-direita cresce e os moderados estão a deixar-se contagiar

A extrema-direita está a crescer na Europa, e a sua influência já se faz sentir nas instituições democráticas. As previsões são unânimes: a representação destes partidos no Parlamento Europeu deve aumentar após as eleições de junho. Apesar de este não ser o órgão com maior peso na execução das políticas comunitárias, a alteração de forças poderá ter implicações na agenda, nomeadamente pela influência que a extrema-direita já exerce sobre a direita moderada.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0