A intersecção entre o mundo das marcas comerciais e o mundo da Cultura — prerrogativa primária deste espaço de crónica — tem uma concretização que é, em grande parte, óbvia: o mecenato cultural. Não há dúvida de que o apoio financeiro privado é, cada vez mais, uma luz de esperança numa penumbra que persiste sombria. E se dúvidas houvesse, este ano de 2020, tomado de surpresa por tormentas bíblicas, deixou a descoberto como é frágil e desprotegida a vida na Cultura. Porém, quem trabalha no sector sabe que, infelizmente, as dificuldades são mais estruturais do que circunstanciais. A pandemia limitou-se a soprar para longe o fino véu que encobria insuficiências profundas e precariedades lastimáveis. Nesse sentido, ainda que o mecenato tenha, neste presente de excepção, um carácter de extrema urgência, não é de todo expectável que venha, num qualquer futuro próximo, a diminuir a sua relevância. Enquanto o investimento público continuar deficitário, o destino da Cultura, e a preservação do seu valor humano e social, dependerá, cada vez mais seriamente, do investimento privado.
Esta constatação, amarga e inquietante, seria suficiente para justificar o tema das minhas crónicas, aqui, no Gerador. Afinal, o mecenato poderá muito bem vir a ser o fôlego final da actividade cultural. Mas na verdade, devo confessar, move-me também — ou sobretudo — uma convicção muito pessoal quanto ao papel salutar que a Cultura pode desempenhar naquele que defendo ser o desígnio primário das marcas — a felicidade do consumidor. E é essa convicção que me impele, hoje, a falar sobre a minha ideia de marca.
Todas as marcas são (potencialmente) positivas
De forma sucinta, acredito, muito particularmente, que as marcas são, na sua essência, agentes ao serviço do bem-estar do ser humano. Este pode parecer um argumento frágil, admito, pois condutas pouco próprias, veiculadas deliberadamente por organizações pouco recomendáveis, habituaram-nos a um olhar desconfiado sobre o mundo das marcas. Porém, não ignorando tais comportamentos absolutamente condenáveis, a verdade é que, quando olhamos para a sua origem, não é arriscado afirmar que qualquer marca nasce para colmatar uma falta na vida do seu público. Isto é, além de ganhar dinheiro e ser rentável, existe uma razão pela qual cada organização faz o que faz. Uma ideia brilhante, um produto original, know-how único ou simplesmente uma nova (e melhorada) forma de fazer algo antigo. Ao concretizar este desígnio, cada marca propõe-se a acrescentar valor à vida daqueles que espera vir a converter em seus consumidores. E, assim, podemos afirmar, o gene positivo é o gene fundador do próprio conceito de marca. É dele que nasce o verdadeiro bem comum de que falava Adam Smith.
Reconheço que este argumento possa, aparentemente, fazer mais sentido em algumas marcas do que noutras. Será que um vulgo pacote de sumo tem uma missão assim tão inspiradora? Será que um trivial tarifário de telemóvel tem uma aura assim tão edificadora? Seremos, talvez, tentados a responder que não. Pelo menos até sermos obrigados a espremer laranjas para o pequeno almoço quando uma reunião urge pela manhã, ou ficarmos incapacitados de contactar livremente quem nos merece atenção. Aí percebemos o quanto tomamos por garantidas as facilidades que nos são proporcionadas pelas marcas, esquecendo-nos, precisamente, que, à sua maneira, na sua realidade particular, elas tendem, de facto, a ajudar-nos a viver melhor.
Infelizmente, este valor positivo intrínseco à oferta das marcas tende a esfumar-se na pressão das contas mensais, dos pagamentos a fornecedores e dos salários de colaboradores. Tal como nós, também as organizações parecem esquecer-se regularmente dos seus desígnios originais, enveredando acriticamente pelo jogo do mercado. O gene positivo fica adormecido ou, simplesmente, irreconhecível. Ora, a minha ideia de marca, defendida profusamente no livro Marca Positiva, passa precisamente pela dilatação do princípio positivo fundador de cada insígnia à estratégia definidora da sua gestão de longo prazo e a todos os seus pontos de contacto com o público. A felicidade do consumidor é, acredito convictamente, a melhor estratégia de negócio. E é nessa felicidade que insiro, pois, a Cultura.
A Cultura na equação das marcas (positivas)
Aceitando a premissa genérica — e essencial — de que as marcas podem ser agentes de felicidade na vida do seu público, a Cultura é, acredito, um dos melhores cúmplices para cumprir e expandir tal prerrogativa. Um cúmplice que, além de uma aura inegavelmente positiva, adiciona valor em múltiplos níveis e em múltiplas frentes. Dos recursos económicos que cria e alimenta (como a criatividade e a imaginação de que falei no texto anterior) à promoção de uma sociedade plural, crítica e livre, fundamental para o bem-estar de cada um de nós. É a partir deste espectro alargado de enunciados positivos que encontro na actividade cultural argumentos únicos para a edificação da minha ideia de marca. Ainda que produza efeitos num espaço temporal incerto, por vezes inteligível, a Cultura dá o significado à vida que os consumidores das marcas, como humanos que são, procuram.
Voltando ao início, podemos concretizar a relação entre o mundo das marcas e o mundo da Cultura numa qualquer ideia genérica de mecenato cultural, mas não podemos permitir que o retorno privado seja medido numa qualquer métrica genérica de reputação. Não é assim tão simples.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
– Sobre João Campos –
É director criativo do Estúdio João Campos, onde colabora com marcas comerciais e instituições culturais, e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019). Dá aulas de branding no ISCSP-ULisboa e no IADE. Acredita que a Cultura, pelo seu potencial humano e social, é um dos melhores companheiros de viagem para as marcas de hoje e, sobretudo, para as marcas do futuro. É sobre isso que escreve no Gerador.