As noites já estavam frias quando Arantza Santesteban foi detida, juntamente com um grupo de companheiros de um grupo pró-independência do País Basco, por alegadas motivações terroristas. Era outubro, lembra-se dessa noite como se tivesse sido ontem. Tem a capacidade de relatar os detalhes a amigos que foi fazendo nos últimos quinze anos, contou-o a um gravador, dentro do carro, para não perder a memória. Como se de vez em quando precisasse de se lembrar de onde vem, ainda que as vivências das 918 noites na prisão, e dos anos que se seguiram, lhe estejam cravadas na pele.
"918 Noites" é o filme que Arantza Santesteban filmou para contar a sua história. Depois de ter sido um dos filmes vencedores do Doclisboa em 2021, com o Grande Prémio Cidade de Lisboa para Melhor Filme da Competição Internacional, o filme da pamplonesa agora a viver em San Sebastian será mostrado amanhã, dia 17 de fevereiro, no Cinema Ideal. Arantza, que durante muitos anos não quis falar sobre o que aconteceu, estará presente na sessão. Agora, consegue falar sobre tudo e encontrar algum sentido.
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Se, num primeiro momento, podemos pensar que o filme será todo dedicado à vida da realizadora na prisão, logo percebemos que não. A sua narração remete-nos para um lugar de liberdade, onde pode pensar além de limites espaciais e geográficos. Leva-nos até aos tempos na prisão apresentando-nos as pessoas com quem passava os seus dias, adjetivando os rostos que surgem em registos fotográficos desses tempos e dessas pessoas. Com distância, reflete sobre o que no momento era vivido a quente, mas recupera pensamentos e análises que fez no momento. A prisão consegue ser um lugar de desumanização, onde vale tudo.
Há uma condição que a une a outras mulheres e que dita o seu comportamento: é uma presa política, não pode ceder à pressão do encarceramento. Tem de ser a "presa ideal". Para que a imagem que se tem de si se possa ir construindo com credibilidade, há muito que guarda para si, há muito que só agora pode dizer em voz alta.
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As imagens que faz lá dentro dão algum sentido ao que por lá acontece. As imagens que lhe enviam do exterior mostram a vida que também é sua mas a que não consegue aceder, para que não perca nada. O filme que faz anos depois dá um sentido às suas várias existências em paralelo.
Arantza foi um dos rostos impressos em cartazes pró-independência e que exigiam "Presos Bascos no País Basco" — mensagem que, ainda hoje, se encontra em qualquer rua de San Sebastian. Sem querer, tornou-se uma heroína no seu bairro, construiu uma imagem de si que era vista de igual forma por aqueles que aguardavam com expectativa a sua liberdade e que lhe agradeciam a bravura todos os dias. Como se a privação do contacto com a vida lá fora, sem direito à intimidade, fosse um sacrifício por todos. Foi recebida com aplausos que não lhe faziam sentido.
Não é que tenha deixado de acreditar em tudo o que acreditava antes, mas o enquadramento que lhe dá, e que os outros lhe dão, deixa de fazer sentido. Procura um novo rumo, um lugar onde possa ser anónima. Uma cidade onde a probabilidade alguém com quem se cruza na rua reconhecer o seu rosto de um cartaz não existe.
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Arantza Santesteban construiu o seu futuro com o passado organizado. Fazer um filme foi a forma que encontrou para o contar pelas suas palavras, com o peso que quer que tenha. Já o abraça com naturalidade, tendo consciência de que faz parte de si e de que não lhe pode fugir. Mas está, acima de tudo, ciente das muitas camadas de cinzento que existem em tudo o que viveu, em tudo o que acreditou, e naquilo que ficou.
Tal como Batasuna, o partido político pró-independência de que fez parte, se revistou e encarou o passado que não faria sentido esconder, Arantza olha para dentro e procura uma forma de encaixar o que está para trás. Enceta diálogos consigo mesma, e convida-nos a pertencer a um circulo que mantém aberto.
A projeção do filme no Cinema Ideal está agendada para as 21h30, entre os dias 17 e 23 de fevereiro, e integra a secção de programação 6.doc do Doclisboa.