No secundário, eu não sabia quem era. No secundário, eu não sabia quem queria ser. Sabia que era boa aluna, que gostava de artes e de me vestir às cores, mas lisas, sempre lisas. Tinha pullovers de todas as cores, t-shirts de todas as cores, e ia salteando e misturando as cores: t-shirt roxa, pullover amarelo, sapatilhas verdes. Tudo em tons fortes, como eu achava que me ficava melhor. Cores, cores, cores.
A dada altura, comecei a sentir-me mais artística, a ler sobre Basquiat, mesmo à rebelde de ensino artístico tradicional. No 11º. Ano, a Prof. Marina Pinho falou-nos dos retratos de mulheres de Willem de Kooning. Eu, miúda de 16 anos com Boticelli impresso no hipotálamo, fiquei maravilhada. Nesse ano, conheci também o trabalho de Louise Bourgeois. Aposto que foi nesse momento que o meu hipotálamo se tornou feminista sem dar por ela.
Sentindo-me artística, salpiquei umas all stars e umas calças com tinta, que usava com todo o orgulho. Ah, não esquecer: lápis e pincéis a segurarem o cabelo. Vou refrasear: o cabelo numa rodilha com um pau lá espetado. (Mega válido, atenção, cada um sabe de si).
Por muito mau que o Secundário seja na minha memória, pelo contexto pessoal da altura, foi lá que percebi que era possível ser boa aluna e ter uma vida social. Não precisas de ser “a popular” ou a “boa aluna”. Descobri o que queria nas minhas amizades, e o que não queria: ciúmes, submissão, intolerância.
No meu primeiro dia de Faculdade, usei umas calças às riscas verticais, fininhas, azuis e brancas, umas all star pretas e uma camisa aos xadrez, vermelha e azul. Antes do primeiro dia de aulas, apenas tinha ido à faculdade duas vezes. Eu vivia em Grijó. Havia, claro, memorizado o mapa da faculdade e onde ficavam as salas, não fosse eu uma nerd com orgulho. Portanto, achei eu que tinha tudo pronto para o primeiro dia. Vou de autocarro de Grijó até ao Porto. 45 min. Saída na batalha. Jardim de São Lázaro. Entro. Não é a faculdade, é espécie de igreja feita colégio (Colégio de Nossa Senhora da Esperança). Atravesso a rua, vou a um quiosque. O senhor olha para mim e logo pergunta — “É para Belas-Artes, não é?” — E eu penso — “Fixe, nota-se que sou artística”. (Tona). Finalmente entro na porta devida. Ainda hoje me lembro do cheiro do hall e do fresquinho da brisa.
Estava perdida e ali encontrei-me. (É mesmo para soar piroso, tal comédia romântica da Hallmark).
Conforme fui tendo as primeiras aulas, apercebi-me de como os meus conhecimentos do secundário em nada se identificavam com o que eu queria aprender. Então, comecei a ir a todas as exposições que havia, a ler todos os livros recomendados de design, a investigar sobre artistas fora do radar dos livros clássicos, e a fazer noitadas para entregar tudo tal e qual como eu queria ver feito. Lá no meio, nasceu a Clara Não.
A faculdade permitiu-me fazer o meu próprio percurso e adaptá-lo ao que precisava. Sei que não minto quando digo que a Faculdade de Belas Artes tem um currículo académico mesmo muito bom, dentro do panorama artístico nacional e europeu. Na altura, não dei todo o valor que tinha, mas é mesmo essencial termos unidades curriculares teóricas como Estética, Antropologia Urbana e Sociologia da Cultura, para além, claro, de História de Arte com a espetacular Maria José Goulão. A única questão social mais alarmante, foi que, em quatro anos de licenciatura, nas cadeiras de Design, só tive duas professoras mulheres. Se eu não tivesse escolhido optativas de Artes Plásticas, só teria tido duas professoras mulheres em todo o percurso académico superior.
No terceiro ano, em 2014, fui de Erasmus, para Roterdão, estudar na Willem de Kooning Academie (tudo faz sentido). Uns meses mais tarde, sai o videoclipe “Flawless”, onde Beyoncé se assume como Feminista, usando um excerto da Ted Talk de Chimamanda Ngozie Adichie. Na altura, estranhei como uma mulher que usa a sedução como parte integrante do seu trabalho, poderia dizer-se feminista. Então, em Antropologia Urbana, fiz um trabalho onde analisei os percursos de Beyoncé, Lady Gaga e Miley Cyrus, para ver se faria sentido dizerem-se feministas. Foi graças a esse trabalho que percebi como o Feminismo deve ser libertador e não castrador, e a diferença entre objectificação sexual e empoderamento da mulher em relação ao seu próprio corpo. A minha roupa, a minha dança, não fazem de mim mais nem menos feminista. Eu tomar o meu corpo como meu e usá-lo como bem eu quiser, é um dos pilares feministas.* Óbvio que elas eram feministas. Tornei-me dj com a Carolina Grilo Santos nesse mesmo ano. Tivemos tanto sucesso, que ficamos residentes no Maus Hábitos. Mais importante que isso, criámos uma comunidade de pessoas fantásticas que correram os clubs do Norte connosco.
Nunca seria quem sou, e nunca teria o trabalho que tenho, se não fosse a faculdade e as pessoas que lá conheci. Estarei sempre agarradinha ao último suspiro da Faculdade. Por tudo isto, dói-me o coração quando sei que há imensas pessoas que não podem usufruir dessa experiência como alunas, como pessoas em construção, devido à pandemia. Ainda me fica mais apertado o peito, quando sei que estão a pagar as propinas inteiras à mesma.
Em 2018, a FBAUP começou a ter, pela primeira vez em toda a sua história, uma diretora. Um bem-haja à Sra. Diretora Lúcia Matos.
*Há várias vagas feministas, cada uma com focos de intervenção mais específicos, conforme o contexto social, político e económico das épocas e comunidades. Aceita-se que estamos na 4.ª vaga.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Clara Não-
Clara Não é ilustradora e vive no Porto. Licenciada em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas Artes do Porto, e fez Erasmus na Willem de Kooning Academie, em Roterdão, onde focou os seus estudos em Ilustração e Escrita Criativa. Mais tarde, tornou-se mestre em Desenho e Técnicas de Impressão, onde estudou a relação fabular entre Desenho e Escrita. Destaca-se pela irreverência e ironia nas ilustrações, onde reivindica a igualdade, trata tabus da sociedade e explora experiências pessoais. Em 2019, lançou o seu primeiro livro, editado pela Ideias de Ler, intitulado Miga, esquece lá isso! — Como transformar problemas em risadas de amor-próprio. Nas horas vagas, canta Britney.