fbpx
Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Bem Comer: Alarvice número 9

Conheço quem diga por brincadeira que “enjoou marisco, pelo muito que comeu”.  O que de…

Texto de Redação

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Conheço quem diga por brincadeira que “enjoou marisco, pelo muito que comeu”.  O que de facto querem dizer é que o marisco é atualmente tão caro que pretender ter-lhe nojo pela abundância desmesurada do consumo não pode deixar de ser grande ironia para fazer rir à volta de uma mesa.

Nem sempre foi assim.

Ou melhor dito, os mariscos mais nobres, as lagostas, lavagantes e lagostins – obviamente que tudo da nossa costa atlântica – sempre foram espécies caras pela raridade e pelos anos de crescimento necessários para terem um porte adequado.

Estes animais criados em águas frias maturam lentamente. Um lavagante azul necessita de 30 anos, ou mais, para atingir os dois quilos. Claro que se a raça tiver nascido e se tiver desenvolvido nos mares quentes da costa africana o crescimento é três ou quatro vezes mais rápido, o que justifica a considerável diferença de preços. E, já agora, de sabor…Não há milagres.

Mas os percebes, navalheiras, e até as “bruxas”, não há muitos anos eram marisco proletário que muitas vezes os pescadores ofereciam ou vendiam a pataco a quem lhes comprava as espécies mais caras. Já para não falarmos das lamejinhas, conquilhas, do berbigão ou do lingueirão.

Tenho algumas histórias do século passado que incluem alarvices ao redor de mesas carregadas de marisco, umas delas também engraçada foi num casamento no Algarve de uma colega minha da faculdade, sendo o pai da noiva armador de vários barcos de pesca em Olhão e Tavira. Ainda hoje tenho pesadelos com o aspeto da mesa vergada pelo peso do marisco.

Mas a narrativa que desejo partilhar aqui foi ainda mais antiga e mais marcante para mim, não só devido à tenra idade (15 anos), mas sobretudo por me parecer que foi desde essa altura que piorei da  “alergia” ao marisco grande,  condição que ainda hoje  mantenho.

Uma das primeiras marisqueiras da Costa do Estoril foi a casa do Sr. Tirano, em Alcabideche.  Teve o seu auge nos anos sessenta e setenta do século passado, quando uma certa euforia de construção civil na Linha de Cascais (associada ao despontar do crédito para a habitação) levou à criação de uma clientela endinheirada que levava os seus engenheiros, fiscais das obras, fornecedores e clientes a “comer marisco”.

Era nessa altura costume distinguir os empreiteiros de prédios e casas para habitação própria –  havia quem lhes chamasse “patos-bravos” com algum menosprezo - dos que se dedicavam às obras públicas, hospitais, bairros sociais, estradas, pontes e viadutos. Estes últimos tinham a fama de ser a aristocracia do ramo, os que teoricamente lidavam com mais fundos e movimentavam mais meios de produção, trabalhadores, máquinas, etc…

A história que conto deu-se com um destes senhores que se especializara em obras mais do tipo “públicas” e que  tinha concorrido à  empreitada para isolar toda a estrutura edificada da Fundação Gulbenkian, a qual estava em muitos locais em contacto direto com a água dos lagos em seu redor, conforme decisão dos grandes arquitetos paisagistas António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles, que tinham desenhado os jardins com os espelhos de água.

Desejando receber condignamente um grupo de engenheiros suíços que vinham a Lisboa no âmbito desse concurso, este senhor pediu a meu pai que organizasse um jantar no Tirano a que nada faltasse. Desejava impressionar os visitantes, mas também convencê-los a darem-lhe a representação de alguns materiais de isolamento e técnicas de construção pioneiras.

E como eu falava bem francês desde muito novo, fui arregimentado para tradutor do pequeno grupo e cooptado para esse jantar onde seríamos sete ou oito pessoas.

O jantar foi apenas de marisco e começou com ameijoas grandes abertas “em vapor”. Depois disso vieram lagostas. Uma para cada conviva. Havendo a opção, inquirida logo de início, se a desejavam cozida ou grelhada. Eram lagostas médias, de cerca de um 1,5 kg cada uma, mas mesmo assim…

Pelo meio da mesa estavam quatro santolas grandes com o recheio trabalhado, rodeadas de pratos com lagostins de bom tamanho  acabados de cozer. Tudo isto “apenas para decorar”.

Estávamos numa altura em que (nunca percebi muito bem porquê) era moda o marisco ser servido acompanhado por travessas de fatias de pão torrado com manteiga. O que ainda mais tornou “enjoativo” o assunto para quem, como eu, nunca tinha verdadeiramente adorado esses mariscos grandes.

Disfarçadamente, lá para o meio do repasto, arranjei coragem para ir à cozinha pedir um pãozinho com presunto, para fazer contraponto.

Nunca mais me esqueci que a conta desse jantar - que meu pai recebeu e de imediato encaminhou para o construtor “dono da festa” - andou muito próxima dos 17 contos. Numa altura em que, para situar, um Volkswagen “carocha” novo custava 60 contos. E em que um funcionário do estado com uma chefia intermédia ganhava cerca de 6 contos por mês.

Texto de Manuel Luar
Ilustração de Priscilla Ballarin

Se queres ler mais crónicas do Bem Comer, clica aqui.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

11 Março 2024

Maternidades

28 Fevereiro 2024

Crise climática – votar não chega

26 Fevereiro 2024

Os algoritmos em que nós podemos (des)confiar

25 Fevereiro 2024

Arquivos privados em Portugal: uma realidade negligenciada

21 Fevereiro 2024

Cristina Branco: da música por engomar

31 Janeiro 2024

Cultura e artes em 2024: as questões essenciais

18 Janeiro 2024

Disco Riscado: Caldo de números à moda nacional

17 Janeiro 2024

O resto é silêncio (revisitando Bernardo Sassetti)

10 Janeiro 2024

O country queer de Orville Peck

29 Dezembro 2023

Na terra dos sonhos mora um piano que afina com a voz de Jorge Palma

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação à Língua Gestual Portuguesa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online ou presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Práticas de Escrita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Comunicação Digital: da estratégia à execução [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

O Parlamento Europeu: funções, composição e desafios [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Pensamento Crítico [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

22 ABRIL 2024

A Madrinha: a correspondente que “marchou” na retaguarda da guerra

Ao longo de 15 anos, a troca de cartas integrava uma estratégia muito clara: legitimar a guerra. Mais conhecidas por madrinhas, alimentaram um programa oficioso, que partiu de um conceito apropriado pelo Estado Novo: mulheres a integrar o esforço nacional ao se corresponderem com militares na frente de combate.

Saber mais

1 ABRIL 2024

Abuso de poder no ensino superior em Portugal

As práticas de assédio moral e sexual são uma realidade conhecida dos estudantes, investigadores, docentes e quadros técnicos do ensino superior. Nos próximos meses lançamos a investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, um trabalho jornalístico onde procuramos compreender as múltiplas dimensões de um problema estrutural.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0