Conheço quem diga por brincadeira que “enjoou marisco, pelo muito que comeu”. O que de facto querem dizer é que o marisco é atualmente tão caro que pretender ter-lhe nojo pela abundância desmesurada do consumo não pode deixar de ser grande ironia para fazer rir à volta de uma mesa.
Nem sempre foi assim.
Ou melhor dito, os mariscos mais nobres, as lagostas, lavagantes e lagostins – obviamente que tudo da nossa costa atlântica – sempre foram espécies caras pela raridade e pelos anos de crescimento necessários para terem um porte adequado.
Estes animais criados em águas frias maturam lentamente. Um lavagante azul necessita de 30 anos, ou mais, para atingir os dois quilos. Claro que se a raça tiver nascido e se tiver desenvolvido nos mares quentes da costa africana o crescimento é três ou quatro vezes mais rápido, o que justifica a considerável diferença de preços. E, já agora, de sabor…Não há milagres.
Mas os percebes, navalheiras, e até as “bruxas”, não há muitos anos eram marisco proletário que muitas vezes os pescadores ofereciam ou vendiam a pataco a quem lhes comprava as espécies mais caras. Já para não falarmos das lamejinhas, conquilhas, do berbigão ou do lingueirão.
Tenho algumas histórias do século passado que incluem alarvices ao redor de mesas carregadas de marisco, umas delas também engraçada foi num casamento no Algarve de uma colega minha da faculdade, sendo o pai da noiva armador de vários barcos de pesca em Olhão e Tavira. Ainda hoje tenho pesadelos com o aspeto da mesa vergada pelo peso do marisco.
Mas a narrativa que desejo partilhar aqui foi ainda mais antiga e mais marcante para mim, não só devido à tenra idade (15 anos), mas sobretudo por me parecer que foi desde essa altura que piorei da “alergia” ao marisco grande, condição que ainda hoje mantenho.
Uma das primeiras marisqueiras da Costa do Estoril foi a casa do Sr. Tirano, em Alcabideche. Teve o seu auge nos anos sessenta e setenta do século passado, quando uma certa euforia de construção civil na Linha de Cascais (associada ao despontar do crédito para a habitação) levou à criação de uma clientela endinheirada que levava os seus engenheiros, fiscais das obras, fornecedores e clientes a “comer marisco”.
Era nessa altura costume distinguir os empreiteiros de prédios e casas para habitação própria – havia quem lhes chamasse “patos-bravos” com algum menosprezo - dos que se dedicavam às obras públicas, hospitais, bairros sociais, estradas, pontes e viadutos. Estes últimos tinham a fama de ser a aristocracia do ramo, os que teoricamente lidavam com mais fundos e movimentavam mais meios de produção, trabalhadores, máquinas, etc…
A história que conto deu-se com um destes senhores que se especializara em obras mais do tipo “públicas” e que tinha concorrido à empreitada para isolar toda a estrutura edificada da Fundação Gulbenkian, a qual estava em muitos locais em contacto direto com a água dos lagos em seu redor, conforme decisão dos grandes arquitetos paisagistas António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles, que tinham desenhado os jardins com os espelhos de água.
Desejando receber condignamente um grupo de engenheiros suíços que vinham a Lisboa no âmbito desse concurso, este senhor pediu a meu pai que organizasse um jantar no Tirano a que nada faltasse. Desejava impressionar os visitantes, mas também convencê-los a darem-lhe a representação de alguns materiais de isolamento e técnicas de construção pioneiras.
E como eu falava bem francês desde muito novo, fui arregimentado para tradutor do pequeno grupo e cooptado para esse jantar onde seríamos sete ou oito pessoas.
O jantar foi apenas de marisco e começou com ameijoas grandes abertas “em vapor”. Depois disso vieram lagostas. Uma para cada conviva. Havendo a opção, inquirida logo de início, se a desejavam cozida ou grelhada. Eram lagostas médias, de cerca de um 1,5 kg cada uma, mas mesmo assim…
Pelo meio da mesa estavam quatro santolas grandes com o recheio trabalhado, rodeadas de pratos com lagostins de bom tamanho acabados de cozer. Tudo isto “apenas para decorar”.
Estávamos numa altura em que (nunca percebi muito bem porquê) era moda o marisco ser servido acompanhado por travessas de fatias de pão torrado com manteiga. O que ainda mais tornou “enjoativo” o assunto para quem, como eu, nunca tinha verdadeiramente adorado esses mariscos grandes.
Disfarçadamente, lá para o meio do repasto, arranjei coragem para ir à cozinha pedir um pãozinho com presunto, para fazer contraponto.
Nunca mais me esqueci que a conta desse jantar - que meu pai recebeu e de imediato encaminhou para o construtor “dono da festa” - andou muito próxima dos 17 contos. Numa altura em que, para situar, um Volkswagen “carocha” novo custava 60 contos. E em que um funcionário do estado com uma chefia intermédia ganhava cerca de 6 contos por mês.