Haverá quem pense que apanhar uma torcida grande nesta noite de final do ano faz parte da tradição.
Assim pensei igualmente durante muitos anos da minha vida, antes de ter tomado o licor da sensatez, já casado e pai, perante a necessidade de me portar bem e dar o exemplo.
Tinha (tenho) contudo um cunhado mais novo que na juventude – prolongada até para lá dos 30 anos, como “bon vivant” que sempre foi – era muito dado ao convívio fora de casa. A irmã mais velha sempre o protegeu, achava graça a tudo o que o “miúdo” fazia. E eu, como sou filho único, não tinha treinado em casa de meus pais para enquadrar semelhante coisa.
Manda a verdade dizer que o contágio entre a boémia do meu cunhado e a minha pseudo sensatez às vezes corria mais para o lado dele. Ou seja, era eu o contagiado,
O que muitos sarilhos deu lá em casa, porque a ele achavam-lhe “graça”, mas a mim diziam-me que eu tinha mas era idade para ter juízo.
Injustiças da vida, como verificam.
Numa noite de passagem do ano e quando já tínhamos já feito a meia noite, deu ao meu cunhado a vontade de espairecer. A mãe e a irmã não o deixaram levar o carro, e o pai nem se meteu no assunto porque já estava a rezar padre-nossos na “igreja da Estrela”, bem assessorado pela comida e bebida daquela noite.
A minha posição foi neutra, embora deva confessar que alguma réstia de rebeldia me dava para ter inveja daquela liberdade.
Já seriam umas três da manhã quando o impetrante telefona para a irmã a dizer que não arranjava táxi naquela noite e se alguém o poderia ir buscar (estávamos na Beira).
Muito enfadado (imaginem o contrário) lá me vesti e fui andando. A minha mulher estranhou ver-me enfarpelado para a invernia, “se não iria sair do carro”, mas fui dizendo que “quem nasceu no Estoril não era para admirar que se abafasse” (estão a ver que ali começava a mentirazinha).
O meu cunhado estava em Loriga, a cerca de 20 km da quinta. Em Loriga era costume a autarquia patrocinar uma espécie de noite branca de passagem do ano, onde quem quisesse podia vir para a rua com a garrafa de espumante na mão, aquecer-se a um grande braseiro colocado na via pública.
Tínhamos amigos em Loriga, terra de pastores e de bom pão. Um deles fazia parte da conhecida família “Galinha”, padeiros há não sei quantas gerações. E era com essa gente que estava o meu cunhado. Bem “avançado” por sinal.
O que achei mais estranho foi vê-lo não com uma, mas sim com duas garrafas de espumante nas mãos. Uma delas aberta e quase no fim, e a outra fechada. Quando me viu veio logo beijar-me(!) , dizendo que estava a guardar aquela garrafa para mim. O avô Galinha a rir-se disse que podia ser verdade, mas antes disso já tinham marchado mais duas. E por isso ainda bem que cheguei a tempo.
O meu cunhado ofendeu-se com a ideia ali transmitida ao cunhado de Lisboa que ele já teria dado conta de três garrafas. E com grande severidade na voz acrescentou:
- Até pode ser verdade, mas foi por causa do calor que está aqui em Loriga!”
Imaginemos a noite da passagem do ano na serra da estrela, às três da manhã. Muito calor de facto, talvez um grau e meio ao pé da fogueira…
Chegámos a casa já despontava o sol. Houve sermão e missa cantada, acompanhada pelo sacristão que tinha abandonado a “igreja da Estrela” para dar uma valente rabecada aos moinantes. Mas o que lhe doeu mais foi não ter sido convidado para a desbunda noctívaga.
E naquele dia de ano novo amarrou meu sogro a mula à parede e já não nos falou. Nem ele nem a minha mulher.
Mas a birra dela durou mais tempo. Mesmo muito mais…