Numa vida cheia de encontros à mesa, porque os negócios naquele tempo assim obrigavam, é natural que existissem parceiros com que desfrutávamos mais esses momentos. E que, mais cedo ou mais tarde, evoluíam de associados de negócios para nossos amigos.
Eram pessoas de gostos semelhantes, que esperavam pela oportunidade de um próximo encontro para nos surpreenderem com a escolha dos vinhos, com a seleção do local onde almoçaríamos e da própria refeição, muitas vezes combinada previamente com o proprietário do restaurante.
Serviam esses momentos para contrabalançar aquelas vezes em que o almoço era mesmo só uma obrigação, sem que fosse possível encontrar empatia com quem se sentava do outro lado da mesa.
Num desses bons encontros – por sinal bastas vezes repetido até aos dias de hoje já sem negociatas de pretexto, porque a amizade foi-se desenvolvendo - ocorreu um episódio engraçado.
O meu amigo estava numa altura da sua vida em que frequentava muitas vezes um certo restaurante típico, nos arredores de Lisboa, dedicado à cozinha tradicional de Idanha.
Era relativamente perto da sua fábrica, o proprietário tinha uma boa cave de vinhos e esmerava-se em apresentar alguns “mimos” de temporada aos melhores clientes. E ainda por cima fazia questão de reservar algumas das coisas boas que trazia da terra para esses clientes, fosse um cabrito ou borrego ali criado, as chouriças, farinheiras e morcelas de fumeiro caseiro, mesmo algumas simples couves da horta dos pais dele, que de tão tenras e doces se comiam praticamente sem acompanhamentos.
Um dia recebo um telefonema desse amigo a convidar-me para almoçar no dito restaurante, com o pretexto de que o “jagunço” – nome carinhoso que dávamos ao proprietário, importado das telenovelas brasileiras que estavam então no auge da popularidade - tinha lá um petisco de caça.
Convém dizer que, naquele restaurante, a única caça que se servia era javali, tordos e passarinhos. E estes últimos sempre à laia de petisco para os fins de tarde, reservado para conhecidos que ali iam já com esse intuito. Não haveria dessa forma conhecimento profundo do proprietário sobre espécies cinegéticas com aptidão gastronómica.
Já no local escolhemos o vinho, entretivemos a fome com uns passarinhos fritos e aguardámos pela tal surpresa “caçada” e dada em pagamento de uma refeição.
A história que nos contaram foi que uns caçadores tinham lá aparecido no dia anterior para venderem tordos e, como era costume, jantaram. Como não lhes pediram dinheiro, em agradecimento pela refeição tinham lá deixado “aquelas coisas”. Umas aves “esquisitas” que o dono do restaurante não conhecia.
E eram essas aves que ele tinha confecionado para nós.
Chegou o tacho com quatro aves pequenas, feitas tal e qual como se fossem “frango na púcara”. À receita clássica do dito frango o nosso restaurador tinha ainda juntado uma colher de calda de tomate, porque “o tomate faz bem a tudo. É como a cebola”.
No meio dos cubos de presunto, do molho engrossado pelo tomate e pela cebola lá se encontraram as pequenas aves partidas ao meio. E foi ainda possível descortinar, quer no aspeto, quer na textura, quer até no sabor, alguma coisa de diferente.
Muito instado a tentar dizer que aves eram aquelas, o nosso anfitrião lá foi ao caixote do lixo buscar as cabeças para melhor identificação.
Pelos bicos compridos vimos que eram galinholas. A “galinhola-rainha” assim (mal) tratada culinariamente, sem respeito pela nobreza da sua carne, pelo conteúdo da cabeça e, sobretudo, pela confeção do seu paté específico trabalhado com as respetivas “entranhas”.
Houve sermão e missa cantada. As orelhas do “jagunço” ficaram vermelhas daquilo que ouviu. E de tal forma se envergonhou que foi à adega buscar um Pera Manca tinto para pôr na nossa mesa.
Houve que o perdoar depois dessa atitude. Mesmo sabendo que o mitológico vinho alentejano naqueles tempos ainda não tinha subido à estratosfera de preços onde hoje se encontra entronizado.
E ainda ficámos com uma história engraçada para mais tarde recordar.