*Esta é uma crónica do Salvador Sobral, inicialmente publicada na Revista Gerador de julho, lançada no dia 18 de julho de 2020.
Muitas vezes, ao longo da minha curta carreira, me foi feita a seguinte pergunta ou variantes da mesma: «O que o faz ser músico? Qual é o momento que mais valoriza neste seu ofício?»
Certamente não será o estúdio nem os consequentes discos. É, para mim, penoso gravar um disco. Estar fechado sob pressão num cubículo separado do resto dos músicos, ouvi-los através de auscultadores sem o estímulo incomparável de um público é o oposto da minha filosofia de criação musical, baseada na comunicação sonora, visual e simbioticamente energética entre nós, os músicos, e entre nós e o público. Talvez, um dia, mude de ideias e me torne num amante do estúdio e da produção, até porque uma grande parte da música que ouço e admiro foi criada em estúdio com uma produção brutal. Veja-se o caso da melhor banda de todos os tempos, em que cada disco é uma obra de arte criada em Abbey Road.
Assumindo-me, então, como um bicho do palco (e não um animal), é certamente lá que reside a razão pela qual eu não me canso de cantar pela vida fora. Seria fácil e óbvio dizer que o que me move é o concerto em si, a música, os improvisos e a emoção partilhada por todos. Ou os aplausos, essas inúmeras festinhas no ego, tão gratificantes. Ou mesmo aqueles instantes antes de dormir, depois de uma noite de concerto num belo teatro, ao sentir que consegui tocar as pessoas, que a minha missão de mensageiro musical foi cumprida.
Mas o meu ópio é outro e resume-se a uns singelos quinze minutinhos. Exactamente quinze minutos antes de entrar no palco, sou invadido por uma adrenalina avassaladora. Durante esse quarto de hora, sinto uma enorme gratidão, alegria e fortuna por aquilo que faço. Durante esses quinze minutos, sou como aqueles bêbedos exageradamente carinhosos.
E foi durante este confinamento que me apercebi da falta que me faz esse momento. Os directos que fiz nas redes socias durante estas semanas foram apenas tentativas repetidamente falhadas de sentir aquela embriaguez pré-cénica. O que senti foi o sabor de uma cerveja sem álcool, ou de uma francesinha vegetariana. O pior de tudo isto é a incerteza da duração desta ressaca. Recuso-me a acabar esta crónica com um «vai ficar tudo bem», mas sei que quando rompermos a abstinência, vai ser uma bela de uma moca.
*Texto escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1945
-Sobre o Salvador Sobral–
Inquieto, curioso e sem papas na língua, conta com dois discos: Excuse Me (2016) e Paris, Lisboa (2019). Pelo meio, venceu a Eurovisão e integra grupos como Noko Woi, Alexander Search, Mutrama, Alma Nuestra e Cantar Brel. É o autor da crónica «Insónias Produtivas» na Revista Gerador.