Nos inícios de julho partilhei com os leitores uma estória complexa e de emoções intensas entre uma mãe e um filho. Hoje recupero essa narração por ter acedido a novos desenvolvimentos cruciais do enredo.
A progenitora mantinha a sua vida de comportamentos delirantes, apelidando todos – a família, os vizinhos, os transeuntes da cidade – dos nomes mais ignóbeis. O filho, por seu turno, guardava uma pena lacrimejante mesclada com um rancor profundo, reconhecendo-se no seio de uma injustiça social e de um lamento por não poder ter nascido num contexto familiar de fácil envolvimento afetivo. Ainda assim, conservava alguma esperança de que as coisas pudessem melhorar com o tempo, mesmo tendo em conta que este “tempo” constituíam vários anos e ainda que a quotidianidade dos acontecimentos tenda a impedir progressos estimulantes, antes fortalecendo a manutenção do conformismo putrescente que impede a felicidade.
Todavia, nas últimas semanas, a mãe tinha adquirido um novo comportamento, fruto tal da instabilidade do seu estado anímico: o de falar/berrar durante a noite. Assim, por diversas noites, algumas consecutivas, outras perto dessa periodicidade, acordava pelas três, quatro ou cinco da manhã e resolvia insultar as paredes do quarto pensando que a vizinhança de quem ela não gostava a ouviria. Num dos dias, porém, perante a incomportabilidade da situação, o descendente resolve efetuar uma chamada para a polícia no sentido de interromper a barulheira e tentar iniciar um processo de cura médica para a sua genetriz. Os polícias chegam, ouvem os dois lados do conflito (filho e mãe), compreendendo a exaltação da figura feminina deste cenário, e afirmam que, infelizmente, nada pode ser feito do ponto de vista de privar a liberdade da senhora sem qualquer tipo de ameaça à vida própria e/ou a de terceiros e na ausência de um relatório psiquiátrico que comprove a presença de um transtorno.
O dia corre, filho, mãe (e pai também) sem dormirem, mas com ambas as figuras masculinas da família a circularem na rua. A mãe, mesmo após o sucedido, ficara em casa, tendo uma conduta sempre equivalente (o insulto como lança, o berro como escudo). Em complemento, ela sai e entra do apartamento, indo bater à porta de outros residentes para, nas suas palavras, “tentar acabar com essa merda [de falarem de mim [supostamente]]”. Por isso, antes de sair do “lar”, o filho leva as chaves da mãe, incorrendo numa ameaça que, contudo, considerou relevante para tentar interromper o comportamento dela: “se saíres mais uma vez não conseguirás entrar mais em casa”.
Eis que, mais tarde nesse dia, pai e filho descobrem que a mãe foi internada no hospital. Quadro legal: internamento compulsivo. Excerto da descrição da participação que o filho levantou junto da polícia dias depois: “(…) a internada padece de doença do foro psiquiátrico com índices de perigosidade para terceiros assim como para com a sua própria integridade física, sendo que recusa internamento”. Afinal, o que não existia e não era possível tornou-se ambas as coisas. O sistema – lei, forças de segurança, autoridades de saúde – atuou, ainda que, por motivos que podem ser imputados a vários protagonistas, na opinião do filho, tardiamente.
Nunca o rebento pensou seriamente que a possibilidade de internamento se iria concretizar. Parecia constantemente estar nos horizontes mais remotos. Mas aconteceu. E, à data desta “carta”, a senhora ainda se encontra internada, estando a realizar terapia e medicação.
Não sabe o filho o futuro, temendo por ter tomado a decisão errada. Ou, dito de outra maneira, por ter feito a escolha correta, porém sem garantir que a mesma se traduzirá em maior qualidade de vida para todos os envolvidos, sobretudo para a progenitora, em tempo útil (não há como esquecer que a mãe possui um cancro pulmonar maligno). Entre o egoísmo e o altruísmo de ter avançado (demais? justamente?) subsiste o rapaz com imensas dúvidas e uma centelha de esperança. Depois disto, que relação entre os dois familiares fica? No fundo, a liberdade retirada será temporária? E possibilitará uma maior liberdade no futuro ao garantir maior bem-estar individual e coletivo entre estas personagens?
A malquerença reconverter-se-á, se e quem sabe quando, em amor consolidado?