Costumo ser a primeira a concordar que este tipo de “se” não faz bem a ninguém – é irreal, e, portanto, não tem um grande propósito. Não deixo de acreditar que a questão da orientação sexual está tão enraizada que é necessário manter a conversa aberta a todas as possibilidades e desconstruções.
Numa perspetiva de comunidade talvez nem sempre sirva de resolução usar este “se” como argumento, mas tem sido incrivelmente útil nas discussões que tenho com pessoas heterossexuais. Aprendi com a Carol, uma das minhas parceiras, que a melhor resposta que podemos dar a alguém que nos pergunta: como é que descobriste que és lésbica? É perguntando: “como é descobriste que és heterossexual?”. A quantidade de expressões faciais que se observam nesse momento mostram o quão difícil é fazer este exercício de desconstrução da sexualidade e do amor. Afinal de contas, quando é que as pessoas descobriram que eram heterossexuais?
A orientação sexual é nos imposta nos discursos, nas músicas, nos filmes, nas perguntas das famílias, nos livros, na publicidade e no formato que se vem a repetir geração após geração. Para muitas pessoas é impensável questionar a orientação, parece que é um dado adquirido – e atenção que estas presunções ou imposições sociais são perigosas, uma vez que mexem diretamente com a nossa felicidade e forma como nos relacionamos.
O exercício de questionar: e se não existissem orientações sexuais? Leva muitas vezes ao entendimento de que, possivelmente, a forma como as pessoas se relacionavam eram baseadas em carácter, personalidade, empatia, amor, desejo e menos em genitálias (e até isso está errado, uma vez que a genitália não define o nosso género).
No último artigo que escrevi falava sobre a importância de pertencer a uma comunidade e a forma como tudo o que é bom ou mau afeta um todo. Não deixo de ser grata por estar envolvida numa comunidade que se agarra e derruba muros em conjunto. Ainda assim, não seria eu poetisa e ativista, se não imaginasse um mundo em que as pessoas seriam livres – e apenas livres – para serem pessoas – e apenas pessoas.
Quando falamos de orientação sexual acabamos por nos focar imenso na nossa experiência pessoal. Tendo em conta a geografia, não somos as pessoas mais afetadas pela homofobia nossa de cada dia. Este meu exercício – feito especialmente com pessoas heterossexuais – leva muitas vezes a questões mais profundas, como classe, religião e tantas outras politiquices. Os direitos (conquistados) não estão implementados pelo mundo em todas as pessoas não-hétero.
Aprendi com a Carol, uma das minhas parceiras, que a melhor resposta que podemos dar a alguém que nos pergunta: “como é que descobriste que és lésbica?” É perguntando: “como é descobriste que és heterossexual?”. Sorte a minha por ter perto de mim quem desconstrói a orientação e a sexualidade duma forma tão assertiva e efetiva – mas sabemos que as dores da comunidade não são resolvidas com suposições.
O ativismo pode ser cansativo – pode e é. Explicar, a vida toda, como é que se “descobriu” uma coisa que nos é natural, não só é invasivo como nem sempre faz sentido. Como é que se descobre que somos nós? Ninguém sabe. A nossa orientação – “nossa” refiro-me a todas as pessoas – não é uma coisa que está estagnada. Pode até nem existir reposta – pode até nem existir orientação. Se calhar a melhor forma de nos orientarmos é essa, ignorando o padrão social e assumirmos que amamos e nos relacionamos – ponto.
Quando o ativismo for cansativo e te perguntarem como é que descobriste que não eras heterossexual e não te apetecer explicar toda a história de como o L Word te fez sentir coisas na barriga (e a Sul), pergunta: como é descobriste que és heterossexual?
-Sobre Marta Guerreiro-
Marta Guerreiro é formada em Jornalismo com mestrado em Realização. Conta com três livros publicados e vários trabalhos escritos na área do activismo (com foco em saúde mental, feminismo, não-monogamias e questões lgbtq+), assim como com a criação de uma lista de psicólogues lgbtq friendly disponível online.
Acredita que a revolução também se faz através da escrita e que a poesia e a empatia são protagonistas na mudança e na igualdade.
Atualmente está emigrada em Londres onde, além de continuar a escrever, trabalha também com propriedade intelectual e proteção de marcas.