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“The Voice of Elmira” – dar voz à dor

Os desafios que os refugiados enfrentam são de uma dureza inimaginável e incompreensível para quem tem o privilégio de nunca ter tido a sua paz roubada pela guerra. Trata-se de muito mais do que os traumas criados pela experiência de assistir a bombardeamentos e tiroteios de tão perto. Estas pessoas vêem-se obrigadas a abandonar o seu país de origem, onde outrora encontravam conforto e comodidade, devido às péssimas condições criadas por este tipo de conflitos, tal como o difícil acesso a alimentos e cuidados de saúde, a perda de comunidades e casas, a perda de empregos e a falta de água potável e de saneamento.

Texto de Redação

Fotografia da cortesia de Elmira Shahanaghi

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A 22 de setembro de 1980, eclodiu a guerra Irão-Iraque – uma das muitas que se travaram nos países árabes nas últimas décadas. Segundo as estatísticas do website Macrotrends, durante este período contam-se mais de 2 milhões e 700 mil refugiados iranianos.

©Not Even Past
Via Wikipedia

Entre milhões de personagens de uma história que, com certeza, poderá ser contada de muitíssimas perspetivas diferentes, inclui-se Elmira Shahanaghi.

Cortesia de Elmira Shahanaghi

Elmira tinha apenas um ano e meio de idade quando, nos braços da mãe, acompanhada pelo pai e os dois irmãos mais velhos, deixou o Irão. Quando nasceu, em 1984, a guerra já havia começado há tempo demais e, como se verificaria mais tarde, o ponto final ainda estava longe de ser colocado. A família Shahanaghi teve de vender tudo aquilo que tinha para pagar aos traficantes de pessoas, que prometiam passaportes falsos e acompanhamento durante o processo de fuga. Os traficantes autorizaram-nos a carregar somente uma mochila – a mãe, por exemplo, não carregava mais do que um pequeno saco com os essenciais para o bebé.

A primeira paragem da viagem foi na Turquia, precisamente onde surgiram as maiores preocupações e anseios, pois, caso fossem descobertos, seriam imediatamente deportados e presos ou, até, executados – com certeza, não havia hesitação quando se tratava de castigar os clandestinos. De um país, prosseguiram para outro – o segundo destino foi Madrid, cidade na qual a família permaneceu durante algum tempo, antes de partir para o Canadá. “Os traficantes que nos ajudaram pediram à minha mãe que me beliscasse, para que o meu choro distraísse os seguranças, impedindo-os de fazerem muitas perguntas e de prestarem atenção aos passaportes.”, conta Elmira e ri-se por achar engraçado o facto de ter sido ‘usada’ como distração. “Aparentemente funcionou”, observa. Com a chegada ao Canadá, depararam-se com a realidade das suas novas vidas – “um choque” para os pais de Elmira. Com pouco mais do que cem dólares no bolso, integraram-se num campo de refugiados com “condições repugnantes”. Após terem recebido os documentos que lhes concediam a cidadania, mudaram-se para uma casinha que partilhavam com outras dez pessoas que lhes eram desconhecidas. Elmira não se recorda propriamente destes tempos. Recorda-se, no entanto, do desconforto que sentiu durante a infância, do sentimento de pertença que sempre lhe faltou. “Nunca me senti em casa. Cedo comecei a questionar-me sobre a minha identidade e sobre o meu propósito, mas não tinha ninguém com quem falar sobre isto. Sentia-me maluquinha por pensar nestas coisas com apenas dez anos de idade”, diz Elmira. “Os meus pais não gostavam nada de falar sobre o que havia acontecido, por isso nunca considerei partilhar os meus pensamentos com eles como opção”.

Passadas duas décadas, com já 30 anos, Elmira Shahanaghi reconheceu o seu percurso como refugiada como sendo parte da sua história de vida e identidade. Na verdade, foi a envolvência num projeto comunitário no Brasil, que a fez chegar a essa conclusão. “Trabalhei com comunidades marginalizadas, nomeadamente crianças. Foi a primeira vez em que entrei em contacto com pessoas que não têm os mesmos privilégios e recursos que nós. Identifiquei-me, imediatamente, com estas crianças – senti que as compreendia, como se fossem um espelho, uma reflexão da forma como eu cresci, porque, de certo modo, também me senti marginalizada.” A partir daí, começou, então, um longo percurso de reflexão, que se prolonga até aos dias de hoje: “Nunca tive um senso de identidade e, sinceramente, ainda estou à procura.”

Hoje, Elmira tem como principal objetivo contar e expandir a sua história, de modo a dar voz às suas angústias e, simultaneamente, a quem tem as suas próprias histórias  para contar. Atualmente, é escritora, comunicadora de marketing e estrategista criativa, visando conectar pessoas através de histórias de apelo universal. A sua paixão reside na utilização de filmes como ferramenta para a criação de projetos com impacto social em comunidades globais. Como premiada produtora e educadora de curtas-metragens, ela acredita que os filmes servem como um meio transformador que inspira, mobiliza e promove o desenvolvimento comunitário, assim como individual. Em setembro de 2019, publicou uma curta-metragem, The Voice of Elmira, que remete para a sua experiência enquanto refugiada de guerra, dando ênfase àquilo que sentiu e sente.

Via Instagram de Elmira Shahanaghi

Numa entrevista à ESCS Magazine, Elmira Shahanaghi revela mais sobre o seu processo de recuperação psicológico e apela à importância dos diálogos em torno deste tema.

ESCS Magazine (ESCS M.) - Como é que encontrou força nos tempos difíceis?

Elmira Shahanaghi (E. S.) - Encontrei força explorando diferentes meios através dos quais me pudesse expressar. Senti-me, especificamente, conectada à arte e à expressão criativa, que me permitiram dar voz à minha dor. Até então, essa era uma dor muito privada, que eu nem sabia que estava a carregar durante tantos anos. Para mim foi muito importante, por um lado, ter alguém com quem falar, e, por outro, criar a curta-metragem. Escolhi uma via mais pessoal para a minha voyage de superação das dificuldades. Podia-me ter juntado, por exemplo, a uma associação, mas não o fiz porque considerei mais relevante aprender sobre mim própria.

Via The Guardian
ESCS M. - Porque é que considerou tão importante contar a sua história?

E.S. - Foi imperativo para mim contar a história porque é uma forma de expressão individual que me possibilitou encontrar ordem no caos, coerência na incoerência, luz na escuridão. Expressar-me depois de experienciar este acontecimento através da arte permite-me construir algo a partir de todas as histórias que estão na minha cabeça e me impactam emocionalmente, psicologicamente e, consequentemente, a nível da saúde. Dou forma aos pensamentos e, assim, cresço.

Quando se partilha uma história pessoal, através da arte, de conteúdo audiovisual, de expressão criativa, contribui-se para a mudança, porque a partilha com o mundo permite criar conversas e discussões sobre o assunto. Mudança é um processo gradual – começa por ser pequeno, mas depois tem efeito em algo muito maior. Às vezes nem se trata do trabalho em si, ou daquilo que se defende, mas sim da reflexão interna que, indiretamente, se pede que o público faça. Uma história tem algo com o qual as outras pessoas se podem ou não relacionar. Isso por si cria mudança – esse tipo de interação faz com que as pessoas pensem e repensem sobre as suas próprias histórias.

ESCS M. - Como é que este evento a impactou e moldou como pessoa?

E.S. - Permitiu-me sentir muito mais que felicidade ou tristeza – todas as outras emoções que se encontram pelo meio. Uma vez desvendado esse novo espetro de emoções, pude sentir uma maior empatia, especialmente por quem passou pelo mesmo que eu. Quem vive uma vida fácil, tem muita dificuldade em compreender verdadeiramente o outro.

Todo o meu caminho educacional foi moldado por este evento. Fui para o Brasil em 2014 e um ano depois fui para África. Esta viagem tornou-me mais consciente sobre muita coisa, particularmente sobre as pessoas e as suas culturas. Porque é que eu concordei em ir para uma pequena comunidade, sabendo que o estilo de vida, comparado com aquele que eu tinha no Canadá, seria muito diferente? Quando fiz a minha escolha, não conhecia a verdadeira razão pela qual tinha dito que sim, mas, quando lá cheguei, logo percebi. Estar no Brasil fez-me refletir sobre mim própria e a minha infância. Foi aí que tudo começou.

ESCS M. - Ainda há mais por explorar?

E.S. - Definitivamente. A primeira parte de The Voice of Elmira foi um ponto de partida para aquilo que está por vir. Estou agora a fazer o guião para a segunda parte do meu documentário, onde vou explorar, entre outros, a minha evolução como pessoa – a nova versão de mim que nasceu. Enquanto escrevo, estou a delinear uma história que ainda não tem linhas definidas. Escrever traz momentos de descoberta, que me ajudam a envolver-me e a descobrir o meu ‘lado sombra’. Eu não me sinto canadiana, nem iraniana – estou a navegar no meio disso. Eu viajo muito, por isso, uma parte de mim encontra uma casa em todos os países que visita, mas, na verdade, não pertence a nenhum em específico.

©UNCHR Kenya

A história de Elmira é uma das muitas que foram contadas, e que estão, ainda, por ser expostas. É importante que haja um reforço do suporte oferecido aos refugiados no que toca à saúde mental, para que estes se sintam escutados e convidados a revelarem as suas experiências individuais. Partilhá-las, seja de que forma for, é essencial – é, de facto, uma tarefa dura, especialmente quando se trata de o fazer com pessoas que não passaram pelo mesmo e que desconhecem as adversidades envolvidas na busca pela paz (algo que muitos tomam como garantido, verdade seja dita), mas, segundo Elmira, “esse trabalho permite a cura do sofrimento e das mágoas”.

*Esta reportagem foi escrita por uma aluna de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), no âmbito da parceria com a ESCS Magazine.

Texto de Daniela Matias
Agradecimentos a Elmira Shahanaghi

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