Na Sexta-feira Santa ninguém andava pelos campos nem se visitavam os amigos. Eram tradições antigas que ficaram nos hábitos das gentes, mesmo depois do fervor religioso não ser já o que tinha sido.
Os amigos só esperavam pela passagem da meia-noite dessa Sexta-feira Maior para virem a casa cumprimentar, trocar novidades e…ver como estariam os vinhos novos, ainda em depósito, mas já possibilitando a prova.
Esta ida ao depósito um pouco temporã não era passatempo muito do agrado do adegueiro que fazia o vinho, com medo que o “seu” vinho apanhasse ar e assim se estragasse com tanta remexida…
Mas a geração mais nova, os filhos e herdeiros, não ligavam muito a essas ideias.
Os velhos diziam que o vinho se provava pela “espicha”, pequena torneira na base dos depósitos, sendo negligenciável a quantidade de ar que entraria para dentro por essa pequena abertura. Mas não se mexia no “batoque”, o grande rolhão que tamponava as pipas e que, quando aliviado, fazia correr o vinho em quantidade atendendo à força da gravidade.
Esta “excursão” pascal aos depósitos, feita pela nova geração à revelia dos antigos tinha foros de aventura quase épica.
Tínhamos um certo respeito pelo dono do vinho, que embora pequeno de estatura tinha um feitiozinho complicado.
Costumava dizer: “- Quando estiver o vinho em condições de ser engarrafado tomem até banho nele que é para o lado em que durmo melhor! Mas antes disso não! “
Sem o querer desfeitear havia que, mesmo assim, tratar de dar o eterno descanso a umas garrafitas - de tinto e de branco.
A questão tinha de ser tratada com diplomacia e utilizando o velho aforismo: “ Daquilo que não souberes, nunca te podes vir a queixar”.
Ou seja, em linguagem mais chã e popular, havia que planear um roubo. Na linguagem dos filhos, nem tanto um roubo, mas sim “uma distribuição da herança antes da abertura do testamento”.
Munido da chave original da adega o “herdeiro” que vivia lá em casa tinha já mandado fazer um duplicado. Pela noite de Sexta-feira Santa abríamos a Adega, cometíamos o delito e escondíamos as garrafitas.
No Sábado de Aleluia, pela tardinha, chegavam os amigos.
Improvisávamos uma cesta de piquenique, com tudo a que tínhamos direito no capítulo dos “secos”, e depois de retirados os “molhados” do seu esconderijo íamos todos juntos para um local retirado e sossegado, onde pudéssemos festejar até que as legítimas mulheres fossem à nossa procura, com cara de caso.
Este era o Plano que se repetia quase todos os anos.
Problema maior da sua concretização era o facto de o adegueiro adorar a pândega e estar sempre à espera de ser convidado para o “entreato”. Mas como não conduzia tinha de ser mesmo convidado para ir connosco.
Não o convidávamos e pronto!
Ao princípio amuava. Mas ao fim de dois anos ou três com as mesmas exéquias, todos aqueles Sábados antes da Páscoa, começou a desconfiar…
Num certo ano deixou-nos “sair” à vontade, mas de combinação com o taxista lá da terra encetou de imediato uma perseguição digna do “Need for Speed”…
Ao chegarmos ao “palheiro” onde costumávamos cometer o delito, mal sonhávamos que o duo do reumático vinha na nossa peugada, puxando ao máximo os 75 HP do tísico Peugeot 404, único carro “ de praça” da aldeia.
“- Há lugar para mais dois, meus Senhores?”
Isto perguntava, esgrimindo um queijo da Serra com uns 2 kg, passaporte considerado suficiente para permitir a entrada na paródia. O silêncio sepulcral que se seguiu foi tomado por aquiescência. Entraram e sentaram-se.
“- Belo Vinho! De quem é?” Perguntava o “impetrante”, ao beber do seu próprio néctar, sem saber…
“- Foi aqui o Jorge que o trouxe, é do pai dele”.
Respondeu-lhe o filho, com a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
“-Pois. Vê-se logo que foste à “espicha” do vinho do teu Pai, Jorge! Este é vinho novo e do bom! Mas não se deve tirar o vinho dessa maneira! Estraga o resto que fica no depósito!”
E, num lampejo de lucidez repentino, acrescentou:
“- Mas o teu pai não é advogado Jorge? Também faz vinho?”
O amigo Jorge teve uma das melhores tiradas da sua vida de estudante em Coimbra (sendo a palavra “estudante” algo exagerada para descrever aquilo que, de facto, o ocupava na “lusa Atenas”):
“ – Foi um Cliente que lhe deu a barrica em paga de uma causa que ele ganhou.”
“- Olha, vou falar com o teu pai. É capaz de ser muito vinho para a vossa casa. Se ele não quiser ficar com o depósito todo, eu compro-o. Belo Vinho!”
O frio que se fazia sentir no “palheiro” desceu para aí uns 5 graus, no mínimo. Valeu-nos, mais uma vez, o “estudante” de Coimbra:
“- Deixe-se disso, que 5 litros por dia não lhe chegam!”
“-Tá boa! Homessa! Quem diria Hein? Um homem de Leis...”
E lá saímos da aventura chamuscados mas não queimados… mas parece que quer o taxista quer o dono do vinho da discórdia nunca mais utilizaram os préstimos do pai do Jorge nas suas muitas demandas, típicas daqueles tempos sem testamentos, com heranças mal enjorcadas e de primos e irmãos desavindos, que davam o sustento a tanto advogado serrano…
O pai do Jorge (de quem não me recordo o nome) é que nunca percebeu o porquê da desfeita… e quem sabia também nunca lhe disse.