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Bem Comer: “Ter mais Olhos que Barriga”

“Do que sabemos dos medas, persas, assírios, babilónicos, fenícios, cartagineses, gregos, romanos, e outros, até…

Texto de Andreia Monteiro

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“Do que sabemos dos medas, persas, assírios, babilónicos, fenícios, cartagineses, gregos, romanos, e outros, até à Idade Média e ao Renascimento, e mesmo depois, é uma sinistra relação de fomes e de empaturramentos”, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986; historiador e antropólogo,. Considerado um dos mais importantes pesquisadores das manifestações culturais brasileiras).

Esta antiga injunção lusa – “ter mais olhos que barriga” - castigava aqueles gulosos que cobiçavam alguma iguaria sem depois ter apetite para a comer. Mas o seu significado original tinha a ver com a fome que nos séculos passados - e até quase à nossa atualidade -  fustigava as aldeias, vilas e cidades.

Hoje em dia, para a maioria das pessoas,  a fome e a vontade de comer  estão mais diretamente ligadas às emoções  - a tristeza, a desilusão e a depressão - e muito menos às condições cruas da sobrevivência.

Fome física é a que é necessária para alertar os sentidos para a nossa sobrevivência, enquanto a fome emocional vai  muito para além dessa necessidade. É a compulsão para comer, levando-nos a comer pelas mais variadas razões e mesmo que já estejamos saciados.

Dizem os entendidos que esta compulsão para comer emocionalmente, estimulando assim os centros de prazer do cérebro,  pode ter origem num comportamento social muito comum pelo qual todos, ou quase todos,  passámos na infância: quando sofríamos algum desconforto ou nos magoávamos, e chorávamos, recebíamos em troca um beijo e um  chocolate ou um bolo,  como compensação.

Na modernidade dos países desenvolvidos a importante questão alimentar e as suas desordens estão sobretudo relacionadas com o conceito de “fome emocional”.

Mas a fome física ainda existe. No mundo obviamente, com grande relevo para a África Subsaariana, mas  sem esquecer outras latitudes. Um facto incrível anunciado pela FAO-ONU: um sexto dos habitantes mundiais - sobretudo em África e na Ásia - passa fome regularmente.

D, Manuel Martins, o grande humanista, bispo emérito de Setúbal, escandalizou o país quando em 1984 declarou perentoriamente: “Há Fome em Setúbal”. E havia.

Em torno da questão planetária dos recursos limitados e da subsistência diz-se que a China começou já a alugar ou a comprar imensas extensões de pradarias africanas para plantar cereais e assim produzir combustível alternativo. E há quem afirme que esta procura de alternativas biológicas ao petróleo, derivadas dos cereais, pode levar à escassez de milho e trigo.

Finalmente, já ninguém consegue esconder que a pesca - mesmo a de profundidade e de alto mar - cada vez captura menor quantidade de pescado e este sempre mais pequeno, sinal de que os cardumes não têm tempo para maturar.

Tive ocasião de privar com velhos aldeões, lá na Beira Alta, 30 anos atrás,  tendo eles nessa altura idades já bem avançadas para a época. Eram pessoas que tinham vivido durante as duas guerras - nascidos em 1910 ou por aí - e que sabiam o que era a fome verdadeira, aquela que os levava a fazerem sopas de ervas do campo e a beberem litros de água do poço para enganar os estômagos vazios.

Não só sabiam o que era a fome fisicamente, como a temiam deveras e, por isso mesmo, quando se apanhavam nalgum casamento ou batizado, daqueles que duravam 3 dias, aproveitavam os comestíveis disponíveis até exagerar.

Tinham “mais olhos que barriga”!  Era verdade, e acabavam quase sempre mal dispostos. Mas temos que os desculpar. O que estavam a fazer era a "armazenar" para os dias maus, como faziam nas suas juventudes, imitando os animais que praticam a hibernação.

Durante o meu casamento, em 1981, um desses velhos camponeses pediu licença para se chegar à minha sogra e disse-lhe: "Dª Maria, este foi o melhor casamento a que fui! Só sopas eram três: a amarela, a verde e a castanha!"

Lá percebemos depois que se queria referir ao leite-creme, ao caldo verde e à cabidela...

Era o Tio Santidade, um dos que tinha passado pela miséria de 1918 e pelo Estado Novo. E que, à cautela, andava sempre com um osso de frango, ou de coelho, ou de cabrito, no bolso.  Na opinião dele:  "Só de cheirar o ossito já tenho apetite para um copito de tinto!"

E quem achar que era o Tio Santidade um velho besuntão, tenha cuidado. Pois El-Rei D. João VI era conhecido por também andar sempre com coxas de frango nos bolsos do real albornoz.  Aqui a diferença é que um trazia o osso, o outro escondia a carne de galinha...

"Cinco Galinhas e meia prometeu o Senhor de Cascais, e a meia vinha cheia, mas de fome para outras mais..."
Nesta redondilha, Camões queixa-se das 5 galinhas recheadas que o sovina D. António, senhor de Cascais, lhe prometeu. Não se esquecendo se calhar das épocas em que muita fome passou e por isso “comia de amigos” como referiu Diogo do Couto quando o encontrou em Moçambique.

E termino citando meu mestre Alexandre O’Neil:

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Como veem o mundo não mudou quase nada. E é pena.

Para a semana prometo que volto aos comes e bebes que alegram o espírito e confortam o estômago!

 Texto de Manuel Luar

 

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