Os meios académicos (sobretudo) mas também os de maior alcance, principalmente no que toca à comunicação social, foram surpreendentemente ativos na divulgação de notícias que associaram Boaventura de Sousa Santos ao capítulo científico publicado numa renomada revista internacional sobre machismo e misoginia na academia – artigo este que, apesar de não nomear nem este investigador nem o Centro de Estudos Sociais de Coimbra, descreve minuciosamente situações de assédio a três mulheres diferentes no contexto que foi facilmente conectado com o correspondente. Rapidamente o seu nome e imagem foram amplamente disseminados em jornais e programas de televisão que a partir de diferentes perspectivas abordaram o caso. “Uma campanha” que poderá ter surpreendido aqueles que, pela primeira vez, ouviram falar desta situação, como se de facto esta instituição de nada soubesse e tal assunto nunca tivesse sido falado. Contudo, bom será reforçar que já em Janeiro de 2019 teriam aparecido na cidade de Coimbra graffitis relativos à conduta de Sousa Santos, que referiam “todas sabemos” e “Boaventura abusador” – o clima de tensão dentro da própria instituição do CES nunca foi escondido por nenhum estudante que estivesse a par do caso. As próprias mulheres falavam com amigos e conhecidos abertamente do tema apesar dos momentos de fragilidade que passavam, uma vez era disso que se tratava: um académico mundialmente reconhecido pelas suas “teorias avantgarde” que funda um centro de estudos em torno da sua “própria” cosmovisão (diretamente correlacionada e inspirada em sociedades e modos de viver não-ocidentais com os quais tivera oportunidade de privar) e recebe estudantes maioritariamente provenientes de países do Sul, que chegam a este lugar Portugal entendido por Sousa Santos como “semi-periférico”, grande parte das vezes em condições precárias de trabalho ou de vida – imigrantes. Daí a primeira questão ser em que condições se encontra, verdadeiramente, qualquer mulher que esteja nesta situação para denunciar um assédio vivido neste contexto? Podemos lembrar-nos, por exemplo, como também reitera o capítulo escrito pelas vítimas, que o Centro de Estudos Sociais não tem nenhum protocolo de como lidar com situações internas de assédio. Não é (ainda?) tempo para acreditarmos em oásis livres de misoginia, machismo e influência patriarcal nas nossas sociedades. Não é (ainda) tempo para acreditarmos em homens que não foram contaminados pelas violências mais micro e estruturais que são cometidas contra as mulheres. Assim, não é tempo para acreditarmos que existe alguma instituição onde o assédio não tem condições para não acontecer – quem diz assédio diz qualquer violência de género cometida contra uma mulher. Por isto, a responsabilização do assédio e da gestão da situação é devido, não só ao agressor, mas também ao seu contexto: que formações promovem? Como desconstruir a misoginia, machismo e violência de género institucionalizadas? Que protocolos desenvolveram e como os aplicaram? Os processos de afastamento dos agressores de espaços e de colaborações como têm sido levados a cabo por exemplo pelo próprio CES e outros órgãos que se recusam a trabalhar atualmente com o investigador apesar de essenciais não nos podem tentar a cair numa cultura de cancelamento cínica e estéril – onde queremos apenas posicionarmo-nos bem perante a opinião pública ou refletir uma real posição ética sem reconhecer o trabalho que precisamos de fazer. A mudança exige disponibilidade emocional e trabalho. Os desafios que encontramos variam entre a urgência de proteger a vítima criando espaços seguros e a necessidade de aplicar uma justiça restaurativa que conduz à mudança de indivíduos e de sociedades. Além disto, parece-me que socialmente insistimos em não superar a gigantesca dificuldade que temos visto ser o reconhecimento do tempo necessário a que uma vítima denuncie um assédio – não estou a falar exclusivamente do caso de Sousa Santos, mas sim de todos os casos semelhantes que operam exatamente nos mesmos moldes. Mais ainda, no facto de procurarmos acreditar em processos judiciais morosos e pouco aplicáveis à realidade dos casos de assédio: que provas poderão existir? Como funciona a relevância dos testemunhos? Que julgamentos procuramos? Se sabemos que estes casos são quotidianos e comuns e sobre consentimento e violações em nossos meios, como já escrevi aqui, como pretendemos lidar com eles?
Finalmente, a historiadora Raquel Varela cujos comentários costumo ouvir minuciosamente, prestando atenção e até admirando, concluiu a sua intervenção sobre este assunto com a seguinte frase: “é muito ingénuo que estes casos só apareçam contra pessoas de esquerda, é uma coincidência”. Esta intervenção não me poderia ter desiludido mais.
Afinal, quem tem atualmente abordado questões de desigualdade entre homens e mulheres? Quem se surpreenderia com uma denúncia de assédio moral ou sexual de Trump, Bolsonaro ou André Ventura? A quem acreditamos poder exigir comportamentos exímios perante violências machistas e misóginas?
-Sobre a Raquel Pedro-
Raquel nasceu e cresceu numa aldeia, onde firmou a sua relação com a natureza e os animais. Tocou percussão numa banda filarmónica e passou por inúmeras atividades extra-curriculares. Aos 15 anos começou a estudar artes na Escola Artística António Arroio, onde se especializou em Realização Plástica do Espetáculo e aos 21 concluiu a Licenciatura em Estudos Comparatistas - Arte e Literatura Comparada, oferecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve trabalhos de ilustração e aprofunda a investigação e escrita de artigos nas áreas da literatura e arte, a partir de uma perspetiva feminista e pós-colonial.