Numa noite de quarta-feira, em Março de 1999, um grupo de amigos tinha-se sentado à mesa para uma refeição pouco usual: um sável fêmea de apreciável tamanho, a rondar os quatro quilos, mas cozido em “court-bouillon” ao invés de ser marinado, partido às postas bem finas e depois frito.
Antes de contar a “estória” convém sabermos que, infelizmente, e como tantas outras coisas nesta vida do século XXI, as populações de sável estão a diminuir.
No início do século passado, lá para 1910, esta espécie podia ser encontrada desde a Europa do Norte até ao nordeste do Mediterrâneo e norte de África. Atualmente é uma espécie rara que mesmo na Europa do Sul começa a decrescer rapidamente.
Em Portugal é hoje menos comum nos rios do sul onde era o seu habitat natural, mas nos rios Mondego, Lima e Minho encontram-se ainda populações de sável com algum significado e cuja exploração assume importância para as comunidades piscatórias.
A entrada desta espécie nos nossos rios decorre entre final de Fevereiro e o final de Abril. O sável desloca-se então para as zonas superiores dos rios onde encontra os locais propícios para a desova, normalmente efetuada durante a noite. E é no decorrer desse percurso que é apanhado.
Mas vamos continuar com a narração, sentados à mesa onde estava já o sável cozido dentro da “pesqueira” à nossa espera, vinte anos atrás.
Esta aventura um pouco estranha tinha começado uns meses antes, com reminiscências antigas de um dos nossos amigos cuja vida brasonada de província lhe tinha proporcionado alguns petiscos pouco comuns a outros mortais.
Dava-se o caso das rendas de algumas das terras da família que bordejavam o Tejo serem pagas (entre outras coisas) em lampreias e sável. A cozinheira tinha que puxar pela imaginação para dar saída a tanta lampreia e tanto sável (estávamos nos tempos em que ambos eram abundantes) e para que as pessoas da casa não enjoassem as refeições inventava formas de confeção que não seriam as mais canónicas.
Daqui surgia por vezes o sável cozido em vapor, preparação reservada para peixes de grande porte (normalmente as fêmeas que eram maiores que os machos).
Já em Lisboa, longe destas mordomias, o nosso amigo nunca mais tinha comido o sável cozido. E quando, esperançado, falava nisso ao proprietário de algum restaurante conhecido, mandavam-no (delicadamente, porque era pessoa de respeito) ir dar uma volta ao quarteirão.
Até que entrou no nosso grupo “recreativo” muito dado aos prazeres da mesa e extremamente eclético, constituído por um eminente cirurgião cardiotorácico, um médio empresário, um pescador artesanal, um assistente universitário e o mecânico responsável pela manutenção das máquinas do antigo Hospital de Cascais, que tinha fama e proveito de mandar lá mais do que o diretor (o qual às vezes também se pendurava nesta tertúlia).
Combinada a refeição “do sável cozido” foi preciso esperar umas semanas para que fosse possível arranjar um exemplar de tamanho adequado.
Depois foi organizar com a cozinha o processo de confeção e convencer a “patroa” a deixar um dos empregados de mesa quase que exclusivamente de serviço àquele grupinho, porque despinhar cuidadosamente um peixe daqueles, com a quantidade de espinhas próprias da espécie, não era nada fácil. Trabalho de cirurgião, como muito bem lembrou o dito cujo que estava na mesa.
Tudo se resolveu a contento, o sável estava muito bom e agradou a todos (até pela novidade).
Quase no fim da refeição e com os olhinhos a brilhar, o instigador da aventura referiu que “estava magnífico aquele peixinho! E bem melhor do que os que tinha comido em casa da família onde não se davam ao trabalho de o despinhar…”
Houve sorrisos amarelos da dona da casa e do infeliz trabalhador designado para a ingrata tarefa… E quem pagou daquela vez teve de se arrimar com gorjeta reforçada. Bem merecida!