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O prazer do palpável

Nas Gargantas Soltas de hoje, Jorge Pinto fala-nos sobre a beleza do formato físico e palpável que o mundo digital nunca conseguirá oferecer.

Opinião de Jorge Pinto

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No filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho e saído em 2016, a personagem Clara, interpretada pela enorme Sônia Braga, é uma jornalista e crítica musical na reforma. Embora já não me recorde com exatidão de todos os detalhes, há uma cena do filme em que Clara é entrevistada por uma jovem jornalista, com quem discute o seu passado e a sua ligação à música. A entrevista tem lugar no apartamento de Clara – essencial na trama, em que um grande grupo imobiliário tenta adquirir o pequeno e valioso prédio onde o apartamento se localiza – e numa sala recheada de LPs que esta colecionou ao longo dos anos.  

A jovem entrevistadora, retratada de forma bastante caricatural, fala do futuro da música tal como ela o imagina: digital, assente no audível mas impalpável e onde os formatos físicos, como os discos com os quais Clara forra a sua casa, mais não seriam que uma triste recordação de um passado ao qual não se voltaria. Perante esta pergunta – e desculpem-me se falho algum detalhe, mas o espírito da resposta era este – Clara dá uma longa e apaixonada resposta em defesa dos LPs, contando que certa vez, numa feira de rua, havia comprado um disco dos Beatles, dentro do qual vinham recortes dos jornais dando conta da morte de John Lennon; enfim, resumia Clara perante uma jornalista que não perceberia nada da mensagem que lhe era passada, a música era muito mais do que aquilo que se ouvia e apenas o formato físico permitia ter acesso ao prazer da experiência musical na sua plenitude e onde este tipo de surpresas poderiam ser encontradas.

Poucos dias após ter visto o filme, comprei um leitor de LPs, num momento em que este formato voltava a ganhar força, continuando a reforçar-se até aos dias de hoje. Os discos em vinil, onde uma fina agulha transforma em som as ranhuras e elevações que os compõem, resistem bem ao tempo; na verdade, se não forem deformados, podem até ser ouvidos sem recurso a eletricidade, saibamos nós pô-los a rodar com o número de rotações por minuto relevante. Sempre que compro um disco em segunda mão vou à procura de qualquer indício da(s) sua(s) vida(s) passada(s). 

Por entre as mais comuns indicações de posse, sejam as clássicas assinaturas com o nome do seu proprietário ou até carimbos com o seu nome e morada, encontram-se, por vezes, mensagens mais pessoais. O local onde foi comprado ou ouvido, um estado de espírito que atravessou quem segurava a caneta ou uma mensagem personalizada quando o disco era uma oferta. Num disco que comprei recentemente, encontrei, colado ao mesmo, uma mensagem de feliz aniversário a alguém que em 26 de julho de 1980, há 43 anos exatos em relação ao dia em que escrevo estas linhas, completava 65 anos e entrava “numa outra vida” que se esperava cheia de música e com saúde.

A close up of a record

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De cada vez que encontro uma mensagem deste tipo, fico por muito tempo a pensar em quem teria sido quem a escreveu ou a pessoa a quem se dirigia. Tento imaginar-lhe os passos, o aspeto, a forma de sentir. Se se tratar de um disco, tento, enquanto o oiço, sentir o que quem o ouviu antes de mim terá sentido. Um prazer dentro do prazer.

Este prazer do palpável e das vidas passadas dos objetos está também noutros formatos, em particular nos livros. Não apenas o prazer de o tocar, folhear, cheirar, acariciar, mas também ler o que os anteriores leitores sublinharam por achar relevante ou por lhes falar ao coração. Nas suas “Crónicas de um livreiro”, Martin Latham dedica várias páginas à marginália e como muitos leitores, ao longo de séculos, foram dialogando com os livros escrevendo nas suas margens. Como com os discos, vou sempre à procura desses traços de vida passada nos livros que compro em segunda mão. Num livro francês sobre Ho Chi Minh encontrei vários recortes de jornal sobre o mesmo – teria o livro pertencido ao autor? De vez em quando lá se encontra um bilhete de transportes ou um bilhete de um qualquer espetáculo que terá servido de marca páginas de circunstância. Também as simples assinaturas podem ser intrigantes: quem será a “São G.” que, em 1984 e em “F.L.” (será uma localidade portuguesa? No estrangeiro?), marcava a posse de uma edição portuguesa do livro “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar que eu compraria quase 40 anos depois em Bruxelas? 

E poderíamos continuar, para lá dos discos e dos livros. Não é o mesmo ter o registo temporal numa foto digital que escrever nas costas de uma foto impressa a data e local onde foi tirada, ficando esta à espera de ser encontrada num futuro mais ou menos distante. Imaginem a beleza de descobrir, anos ou décadas depois, alguma mensagem deixada nas costas de um póster ou pintura. O formato físico permite escrever e transmitir histórias entre gerações, entre geografias e entre desconhecidos. Esse é o prazer do palpável que o digital nunca poderá igualar.

-Sobre Jorge Pinto-

Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.

Texto de Jorge Pinto
Fotografia de Luís Catarino
*As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.*

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