Quando, em 2004, entrei na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, era dado a cada novo estudante um CD com a que seria à data a versão mais atual do sistema operativo Ubuntu. Este sistema operativo é uma das faces mais visíveis e conhecidas do chamado software livre, ou seja, cujo código de programação pode ser livremente e cumulativamente utilizado para qualquer fim, estudado e adaptado às necessidades, redistribuído, e cujas modificações podem ser tornadas públicas. Assim, as melhorias feitas ao próprio software beneficiam toda a comunidade que acede a ele gratuitamente. Nessa data, lembro-me remotamente de ter tentado instalar e utilizar o Ubuntu, tendo desistido de seguida devido ao que me parecia na altura ser um esforço demasiado exigente e, em particular, uma troca para pior, quando comparado com o sistema Windows que havia usado toda a minha vida. Demoraria quinze longos anos a voltar a tentar um sistema operativo livre, ao qual me converti de seguida, o que me levou a novas questões relativas à autodefesa digital.
Não sou um grande apaixonado pela tecnologia nem pelos seus meandros. Como utilizador básico do computador, restrinjo-me praticamente à navegação na rede, ao correio eletrónico e às ferramentas de edição de texto, de cálculo e de apresentação. Faço aqui um esforço grande para pensar noutras palavras para dizer que uso ferramentas como o Outlook, o Word, o Excel e o PowerPoint. E aqui começa o problema: a omnipresença e omnipotência do sistema operativo Windows da Microsoft e das ferramentas por si propostas (às quais se junta o equivalente proposto pela Apple, o macOS e as suas ferramentas). Quanto à navegação na rede ou às aplicações do nosso telemóvel, também aqui nos virá à mente o nome de uma ou outra empresa quando pensamos em aceder a mapas, à drive ou a um tradutor. Este domínio quase absoluto por parte de um punhado de empresas é problemático e deve ser combatido com alternativas mais democráticas; as boas notícias é que essas alternativas já existem, embora ainda pouco conhecidas.
Os problemas do software proprietário e de todo o software que por definição não é livre, como por exemplo o Windows e o pacote de ferramentas da Microsoft Office, são fáceis de perceber, desde logo o seu custo. Como são omnipresentes, são aquelas ferramentas que vemos pela primeira vez quando temos um computador, que estudamos na escola; mais, sendo estas as ferramentas que são utilizadas em ambiente profissional, ser dotado na sua utilização é uma maneira de aumentar as hipóteses de arranjar um emprego. O simples pensar fora destas ferramentas requer um verdadeiro esforço por parte daqueles que durante anos trabalharam com o mesmo sistema operativo.
De notar também que nem todos os programas e aplicações funcionam nos diferentes sistemas operativos; sendo o Windows o sistema dominante, muitas aplicações são desenhadas para funcionar nesse sistema, incluindo aplicações de serviço público. O Estado português tem, felizmente, a possibilidade de aceder às suas ferramentas através de Ubuntu (entre outros sistemas). No entanto, esse mesmo Estado continua a gastar somas avultadíssimas para manter nos seus aparelhos as licenças dos produtos Windows. Esta dependência de uma empresa única é um problema não apenas pelo custo imposto ao Estado, mas também ao nível da soberania e autonomia digital.
Se o custo é um problema no software proprietário, em muitas aplicações na rede o problema é diferente: sendo gratuitas, são-no à custa da venda de dados pessoais, ao arrepio de qualquer defesa da privacidade. Em Bruxelas, cidade onde resido, fiquei curioso com uns autocolantes que vi espalhados pela cidade e onde se lê “Technopolice”. Pensando que se trataria de alguma festa techno, fui procurar mais informação e deparei-me com um conjunto de ativistas a favor de uma maior democratização da tecnologia e de defesa da privacidade. Na sua página encontram-se listadas alternativas de software livre à grande maioria das ferramentas e aplicações que usamos no dia-a-dia. Mas mais, uma vez por mês asseguram sessões de apoio àqueles que desejem assegurar a “autodefesa digital” dos seus aparelhos.
Contrariamente a outras questões de segurança e privacidade, quando falamos do mundo digital o assunto parece não levantar tanta preocupação a uma grande parte da população. Enquanto muitos de nós acharíamos intolerável que alguém abrisse a nossa correspondência postal antes de esta nos chegar às mãos, que alguém se colasse a nós enquanto temos uma conversa com outra pessoa ou que tivesse uma cópia da chave de nossa casa, o equivalente digital parece não levantar tantos problemas. Em boa medida, isto deve-se à complexidade associada ao assegurar da privacidade digital: enquanto trancar uma porta física exige apenas uma chave, trancar uma porta digital é uma tarefa complexa e para a qual muitos de nós não temos preparação.Este será, porventura, o grande desafio do ativismo digital nos próximos anos: alargar os seus horizontes e tornar-se um projeto mobilizador, emancipador e plural. Para tal, terá de deixar de ser visto como apenas um problema de geeks (e que só estes conseguiriam resolver) e passar a ser visto como aquilo que é, uma verdadeira questão de liberdade. Alargando o leque dos seus atores e intervenientes, trazendo mais mulheres e representantes das minorias para o centro da ação, o ativismo digital deve passar cada vez mais tempo no mundo analógico, fomentando escolas populares e a formação do maior número de pessoas para a essencial autodefesa digital. Caso contrário, poderemos acabar prisioneiros na prisão que ajudamos a construir.
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.