O primeiro parágrafo da escrita da luz no teatro português
Quando a fotografia surgiu em Portugal subiu aos palcos. Contudo, em O Insustentável desejo da memória, Incursões na Fotografia de teatro em Portugal (1868-1974), Filipe Figueiredo escreve: “Embora se encontrem retratos de actor desde os anos de 1850 e outros de actor em personagem, de forma avulsa, desde o início da década seguinte, 1868 foi o ano em que foram apresentadas em Portugal as primeiras operetas, que geraram, pela primeira vez, uma produção de retratos de actor em personagem, com alguma consistência.” Esta consistência reside, sobretudo, na coerência de produção, no recurso a um mesmo fotógrafo e na abrangência do elenco. Como exemplo, Filipe Figueiredo aponta o exemplo de Barba Azul e de Bela Helena, enquanto peças cujo tratamento fotográfico ia neste sentido.
Inicialmente, a fotografia praticada era o “retrato do actor”, independente de qualquer representação ou personagem, num contexto autónomo da sua actividade teatral, sendo, por isso, considerada “retrato à civil”. O plano aproximado, a disposição do corpo ligeiramente enviesada, onde o tronco e os ombros se encontravam a três quartos, e o olhar apontando para fora de campo, caracterizam a tipologia das primeiras fotografias que se começam a aproximar do teatro. Quando este último se vai tornando referente, no final da década de 60 do século XIX, surge o “retrato do actor em personagem”, partindo das fotografias de estúdio desenvolvidas até então, desde o início da década de 50. São imagens que remetem para a representação, sem conduzir a uma leitura directa da peça ou da cena. “(…) normalmente com apenas um actor/personagem em foco, relacionam-se com o texto dramatúrgico e com a encenação por via do guarda-roupa e dos adereços - dimensão material mais objectiva -, mas muito, também, por via da pose que procura sintetizar o carácter e os traços mais vincados da personagem”, explica o autor. Na década de 90, serão as imagens procuradas pelos editores de postais, criando-se colecções dedicadas exclusivamente ao teatro, o que contribuiu, indubitavelmente, para a emergência das “estrelas”.
No final do século XIX começam a ser praticados os “retratos de expressão”, os quais “correspondem a registos de expressões faciais” e “resultam de uma associação entre o jogo teatral e a natureza humana de modo a criar ou reforçar a imagem da ‘versatilidade’ do actor”, apresenta Filipe Figueiredo. Não se trata, obrigatoriamente de fazer referência à personagem, mas de explorar expressões.
Quando o “retrato do actor em personagem” é realizado no palco, abre-se a “fotografia de cena”. Esta foi possível graças ao desenvolvimento das condições técnicas, nomeadamente a energia eléctrica. Ocidente, Brasil-Portugal e Ilustração Portuguesa, publicações periódicas generalistas, constituíam meios de divulgação de fotografias de cena. Entre a imprensa e a fotografia, nasce, rapidamente, uma relação de simbiose. A primeira faz com que a segunda chegue ao público, que, por sua vez, a enriquece. A actriz Emília das Neves é a protagonista de um dos primeiros retratos de cena, datado, sem certezas, de 1860, na peça Judith. Contudo, o seu exemplo é uma excepção, porque, nessa altura, “só de forma muito pontual surgem retratos de actores em personagem”, como já foi referido. Para além disso, no que respeita à fotografia, também se verificava, inicialmente, uma fronteira entre o “teatro ligeiro” e o “teatro sério”, estando o primeiro numa lógica mais comercial e, nesse sentido, mais competitiva, recorrendo à fotografia como instrumento de promoção.
No início do século XX, surge a companhia RC-RM, (Rey Colaço - Robles Monteiro), que o autor destaca devido ao “valor permanente” que a fotografia adquiriu para esta e a “particular relação de exclusividade" que teve com o fotógrafo José Marques, a partir de 1959. Esta conclusão é suportada pelo seu vastíssimo arquivo fotográfico, bem como pelo seu Livro de Registos e Repertório que integra fotografias de cena.
A maioria dos retratos de teatro até ao início do século XX, é de autoria desconhecida. Filipe Figueiredo refere que “as várias situações com autoria identificada apontam para uma concentração destes trabalhos nos estúdios, fundamentalmente, de dois fotógrafos”: Joaquim Coelho da Rocha (com actividade entre 1865 e 1891) e J. Loureiro (com actividade entre 1863-1880). O autor identifica ainda Bastos (“R. P. M. Bastos Photographo”), Henrique Nunes (1829-1925) e Costa Lima (1836-1897).
Herdeiros da luz para que o palco não se apague
As heranças dispersas entre a luz e a sombra das fímbrias do pano reúnem-se num tempo outro, onde o tempo deseja não ser tempo. Porém o que resta a uma vida do tempo é um olhar num instante sobre outro instante. Na verdade, não um olhar, mas uma relação do olhar com uma lente, uma relação de despedida, porque de fragmento, uma parte escolhida de um povoado de fios à espera de serem seguidos. A realidade carregada de cortes procurando salvar alguma coisa de si, um resquício, um resto, um rasto.
A fotografia de teatro é um rasgão para uma realidade outra, a do teatro, que nos distancia da que se aproxima da ordem do factual. Assim, esta fotografia é uma descida mais profunda do que as restantes, uma vez que fixa a perda do que não se possuiu. Então, David Cachopo, Estelle Valente e Filipe Ferreira são contemporâneos destes anónimos, porque quiseram escrever com luz a arte do teatro do seu país, dos bastidores da vida, permitindo que esta seja uma memória viva, isto é, transformada e contínua.
Estes fotógrafos foram convidados a escolher seis fotografias de teatro da sua autoria e a legendarem-nas. Também apresentaram a sua biografia.
David Cachopo é pós-graduado em Discursos da Fotografia Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e licenciado em Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia pela Universidade Lusófona, frequentou o primeiro ano do curso na Escola Superior de Teatro e Cinema.
Tem formação suplementar na área de fotografia que adquiriu em diversos cursos nomeadamente na área de fotografia analógica pelo NAF e pela Ar.Co, na área do fotojornalismo pelo Cenjor e pela World Academy. Já conta com algumas exposições individuais como: “Lisboa com história”, no Trampolim Gerador (Lisboa, 2019); “Circulatio”, no Centro de Interpretação de Monsanto (Lisboa, 2019); “Jardim da Memória”, na Galeria da Livraria Barata (Lisboa, 2019) e n'A Reserva na Fábrica, Fábrica da Pólvora (Barcarena, 2019); “In Bocca al Lupo. Crepi il Lupo”, nos Foruns Fnac (Lisboa,Porto,Guimarães, 2018 e 2019); “In Bocca al Lupo”, na Galeria Raúl Solnado, Casa do Artista (Lisboa, 2017) e “Observador e Observado”, na Casa do Sal (Castro Marim, 2016).
Estelle Valente nasceu em Paris, cidade com que mantém uma profunda ligação, a fotógrafa adotou Lisboa, de cujo sol diz não prescindir, de há 10 anos para cá. Em 2012 começou a fotografar Gisela João, qua ainda hoje acompanha. Em 2015, iniciou uma colaboração com o Teatro Municipal São Luiz, onde fotografa ensaios, espetáculos e campanha de comunicação. 2018 foi um ano especial : realizou a sua primeira exposição, em Setúbal, Carla no Papel, onde a atriz Carla Maciel encarna grandes divas do cinema do século passado (Marilyn Monroe, Greta Garbo, Marlene Dietrich); voltou a Paris para outra exposição de fotografia de Teatro, seguida de uma residência artística, no Espace Cardin; a propósito dos 20 anos do Nobel de José Saramago, foi convidada por Anabela Mota Ribeiro para ilustrar, com as suas fotografias, o livro Por Saramago. Começou em 2019 uma colaboração com a revista GQ onde faz retratos de personalidades ligadas à cultura.
Filipe Ferreira, nascido na Suíça em Fevereiro de 1978, é fotógrafo de teatro, música e retratos. Na área da música, já trabalhou com diversos músicos nacionais como David Fonseca, Carlos do Carmo, Camané ou Luísa Sobral. Mas a sua área principal é a fotografia de teatro. Fotógrafo oficial do Teatro Nacional D. Maria II, já fotografou mais de 200 peças nesta instituição. Trabalha regularmente com outros teatros e companhias independentes.Também se dedica à fotografia de retrato de autor.
Texto de Raquel Botelho Rodrigues
Fotografias de David Cachopo, Estelle Valente e Filipe Ferreira