Em 1985, quando eu estava no norte de Portugal a cumprir o Serviço Militar Obrigatório, tive o privilégio de conhecer um escritor extraordinário. No nosso pelotão de recrutas encontrava-se um homem que dedicava todo o seu tempo livre a escrever num caderno que guardava no bolso da farda. Era um jovem com pouco mais de 20 anos, muito tímido e observador, e não mostrava os seus textos a ninguém. Conseguíamos apenas ver que ele preenchia as folhas com uma letra minúscula e muito elaborada, quase como se desenhasse as palavras.
Ao longo dos três meses de treino militar, o acaso juntou-nos várias vezes no mesmo grupo de soldados, e começamos casualmente a trocar algumas palavras. Alguns dias antes do Juramento de Bandeira, e da nossa consagração ao dever de defender a Pátria com a vida, ele surpreendeu-me ao perguntar se eu lhe podia dar uma opinião sobre a sua escrita. Talvez tenha sido pelo facto de eu não lhe ter pedido para ver os textos, mas na realidade, nunca entendi por que motivo ele me escolheu.
Quando abri o caderno e comecei a ler, fiquei estupefacto: vi que se tratava de uma sequência de letras, de palavras e de frases sem nexo que se repetiam, por vezes ao longo de uma página inteira! Encontrei também muitos parágrafos isolados no meio das páginas, com uma ou duas linhas que ele copiara dos jornais, ou talvez dos cartazes que encontrara na rua. Pensei que se tratava de uma piada, mas quando ele me disse que gostava muito de escrever e que as letras, as palavras e os algarismos eram muito, muito bonitos, compreendi e comovi-me ao perceber que aquele homem não sabia ler nem escrever!
Ele transferia para o papel o que via impresso em redor e dedicava-se a reproduzi-lo com a mestria de um artesão experiente, desenhando-o com uma caligrafia belíssima. Possivelmente, até conhecia o significado de algumas palavras, mas a escrita era para ele e no seu todo um mistério maravilhoso. Com muita dificuldade, eu consegui resistir ao impulso sincero de lhe recomendar que contactasse a Junta de Freguesia, a Paróquia ou mesmo uma escola, para que alguém lhe ensinasse o abecedário e a gramática. Tornara-se claro para mim que na sua paixão pela forma da escrita, ele apenas se interessava pela beleza do objeto que criava sobre a folha de papel.
No dia em que fomos transferidos para os nossos respetivos Quarteis Militares, ele deu-me uma folha na qual desenhara uma árvore, cujas raízes formavam a letra “a”, representada com uma caligrafia elaboradíssima, dir-se-ia quase barroca. No momento em que nos despedimos, ele disse-me também que a escrita o ajudava a perceber melhor as pessoas e as coisas. Do fundo do meu coração, desejei-lhe um grande sucesso como escritor e garanti-lhe que aguardava impacientemente pelo seu primeiro livro.
Infelizmente, já decorreram mais de trinta e cinco anos desde aquele dia e eu já não me lembro do seu nome nem sei onde terei guardado a sua oferta. Mas para me consolar, gosto de o imaginar a percorrer o país, e talvez o mundo, com os seus cadernos – já devem ser muitos – e a desenhar letras, palavras e algarismos, e feliz como aquele homem, que nos primórdios da história da escrita, um dia desenhou o primeiro símbolo.