Foi no início desta semana que, durante uma entrevista ao primeiro-ministro António Costa, na TVI, o jornalista Miguel Sousa Tavares colocou uma hipótese: "Imagine que um jovem vai para o mercado de trabalho, altamente qualificado, e lhe pagam aquilo que, para nós, é um belo salário para quem começa, 2 700 euros brutos por mês”.
(Era, de facto, bom. Uma pessoa que se formou, trabalha, cria riqueza para o país... Mas, como se costuma dizer, “era demasiado bom para ser verdade”.)
O raciocínio seguia com a ideia de que, após os devidos descontos às Finanças e o pagamento de uma renda de 1 000 euros por um T1 em Lisboa, aquele jovem ficaria com uns míseros 400 euros para viver – “que é praticamente impossível,” frisou. Ora, nestas condições, o jovem só teria duas opções: viver na casa dos pais ou emigrar.
A equação era, de facto, dramática, tal como o esquecimento de Miguel de Sousa Tavares de sair da sua bolha socioeconómica para confrontar António Costa com a realidade dos rendimentos e despesas dos jovens portugueses – incluindo aquele (mais real) jovem adulto, qualificado, que está há vários anos no mercado de trabalho e a quem pagam aquilo que, para nós, é quase ordenado mínimo.
Era apenas um exemplo, reforce-se, mas era também somente uma entrevista ao primeiro-ministro de um país onde, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), referentes a 2019, um jovem entre os 25 e os 34 anos não ganha, em média, mais de 907,42 euros por mês.
Também é certo que o jornalista se referia a um jovem “altamente qualificado”. No entanto, de acordo com dados da PORDATA (1), em 2019, o ordenado médio mensal de um trabalhador por conta de outrem, “altamente qualificado”, era de 1 435 euros. Nem os “quadros superiores” – os profissionais com as mais elevadas qualificações naquele quadro estatístico – levavam para casa aquele generoso valor, ficando-se pelos cerca de 2 452 euros.
Foi alheação? Talvez. Principalmente quando a premissa em questão foi proferida por um jornalista, pertencente a uma classe em que a maioria dos profissionais recebe menos de mil euros ao final do mês, segundo um estudo do CIES/ISCTE-IUL de 2017 (2).
Eu costumo ser bastante realista nos meus pensamentos e (ainda) nunca imaginei ganhar 2 700 euros. Nem como cenário de fim de carreia.
Existem referenciais que nos levam a balizar aquilo que, sendo hipotético, se pode tornar real. E, pelo que vejo, a precariedade é uma doença crónica do mercado laboral português, sendo que o jornalismo, em particular, já viu melhores dias (não sei, dizem; eu nunca conheci outra coisa.) A verdade é que olho para mim e para as pessoas à minha volta e vejo salários baixos e muita precariedade.
Para onde estava Miguel Sousa Tavares a olhar, quando colocou aquela hipótese que, se não fosse totalmente irreal, poderia até parecer corriqueira?
Certamente existem jovens altamente qualificados que auferem um rendimento perto do mencionado (e ainda bem) e que deixam em impostos e no arrendamento de um apartamento uma parte significativa desse valor. Eventualmente, podemos cruzar-nos com eles na rua. Mas o mais provável é que não seja na minha.
(1)https://www.pordata.pt/Portugal/Ganho+m%c3%a9dio+mensal+dos+trabalhadores+por+conta+de+outrem+total+e+por+n%c3%advel+de+qualifica%c3%a7%c3%a3o-890-7264
(2)https://ciencia.iscte-iul.pt/publications/os-jornalistas-portugueses-sao-bem-pagos-inquerito-as-condicoes-laborais-dos-jornalistas-em-portugal/39571
-Sobre Flávia Brito-
Portuguesa, afrodescendente, mulher, negra, jornalista. Licenciou-se em Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS). No Gerador, procura dar o seu contributo para uma sociedade mais justa, esclarecida e tolerante.